Antro Particular

22 fevereiro 2006

ROLLING STONES: descem ao chão as estrelas em uma noite negra de Copacabana

Muito calor, certamente mais de 30ºC. Na praia de Copacabana, milhares de pessoas caminhavam de um lado ao outro. Sem percurso, sem destino. Apenas com o objetivo de ocupar as quase dez horas que os separavam da aparição dos Rolling Stones. Mais tarde, os milhares tornaram-se milhões. Camisetas, faixas, bonés, broches, bandeiras, adesivos, fotos, chaveiros. Eram então um milhão e duzentas mil pessoas cobrindo a orla de Copacabana até o Leme. Ao mesmo tempo em que não se via como mais pessoas poderiam estar ali, o coração acelerado se perguntava: é pouco, onde estão as pessoas? Quase 22h. E o Rio de Janeiro explode aos gritos e lágrimas assistindo a explosão pelo impressionante telão de alta definição que ocupava o fundo do palco. O som dos primeiros acordes. As luzes sendo direcionadas. Um braço, um pedaço do cabelo, um centímetro do casaco prateado. Não importava o que poderia ser visto, nem ao menos ver de fato. O mundo pára e assiste ao mais impressionante show de rock desde Woodstock. É chegada a hora da história assumir definitivamente a existência de Mike Jagger.

Durante as duas horas de música e conversa e festa, Copacabana parece sair do tempo, destacar-se com a paisagem ao fundo e constituir ali em suas ondas o exemplo mais próximo ao que pode ser desenhado de um paraíso no século xxi. No ar, a sensação de parte de algo maior. Não de Deus ou qualquer outro fundamento místico. Parte de um momento único inserido na história da humanidade. De um momento que se iniciara em 1964 com o lançamento do primeiro álbum, England's Newest Makers. Nasceu aí um percurso profano, provocativo, que mudara o pensamento e comportamento de gerações. Filhos que se lançaram na estrada com suas mochilas e cabelos compridos. Garotos e garotas cujos únicos desejos eram se tornar roqueiros, ganhar o mundo ao sabor das cordas das guitarras e poder cantar as verdades com os corações puros porém repletos de política, posicionamento, esperança. Parte de algo maior, do fato de sermos todos pertencentes a uma mesma espécie. Sem cor, sem fronteira. E se a música não pode ser comparada ao religioso, fez-se outra fé, e pelo rock o instrumento ao sagrado de uma geração disposta a quebrar tabus e romper parâmetros.

Mas há um inevitável final nesse intervalo suspenso. A expulsão do paraíso. As luzes do palco se apagam. A tela se enegrece sem imagem. Os mitos despedem-se entre pulos e acenos. Aos poucos as ondas retornam à sua função de paisagem, as areias claras reaparecem à falta dos pés, os desenhos das calçadas, o cinza do asfalto, as árvores... Tudo está de volta. Ressurge o Rio de Janeiro. Ou renasce? Nunca mais igual. Será impossível pensar em Copacabana sem (I Can’t Get No) Satisfaction. O Rio de Jobim e Vinícius, bossa-nova, das dunas da Gal, de Cartola, Carlos Cachaça, Mangueira, de Hélio Oiticica, parangolé, Waly Salomão, da sunga de Gabeira, dos travestis, das putas, da pompa monárquica, da trajetória imperial, da academia de letras e seus chás e bolinhos e encontros, este Rio é um; o de agora, é outro. Nas nuvens que quase esbarram as montanhas, nos picos do Pão de Açúcar, na desorganização das vielas estreitas dos morros, nas quadras de samba, no branco do Sol escaldante, nas águas da baia, nos lábios do Cristo Corcovado, algo está diferente, fora de ordem. Parece que um anjo moleque desceu pelo morro e bagunçou meus sentidos. Em tudo há uma estranha e debochada língua vermelha sorrindo para mim.

02 fevereiro 2006

ELEIÇÕES 2006: Fim da Verticalização: o Brasil nunca exigiu coerência mesmo


Votar é uma obrigação. Teria como lidar com o voto de outra maneira? Em um país com a quantidade absurda de analfabetos? Com a venda e compra de votos, pagos em camisetas, cestas-básicas, sapatos, dinheiro, canetas e promessas, pelas ruas com tamanha naturalidade, feito cambistas em esquinas de estádios? Há, no Brasil, educação política para liberar o cidadão de tal condição? Infelizmente, não. E direito e obrigação se confundem entre o dever cívico e a apropriação política da ingenuidade popular. Portanto, só nos resta votar. E antes que possa parecer estar descontente com essa possibilidade, digo: ao menos, ainda que manipulados por circunstâncias, podemos votar! Escolher nossas vozes no Congresso e cadeiras do Executivo. Eleger presidentes.

Em 2006 definiremos outra vez a quem caberá presidir o Brasil. As opções são muitas, segundo as inscrições. Dezenas de nomes e números. Contudo, poucas, na realidade. E entre os três ou quatro candidatos com reais condições de disputa, como escolher?

Ao eleger Fernando Henrique Cardoso, a classe-média, sobretudo, correu às urnas na tentativa de estabelecer segurança aos seus ideais e interesses. Defendia-se da esquerda petista e da temida revolução de classe, na tentativa de sustentar sua posição. Ao optar por Luis Inácio da Silva, a classe trabalhadora, sobretudo, estabeleceu, na história do Brasil, um porta-voz, sua representação junto ao cargo máximo. E abriu caminho para as necessárias e prometidas revoluções sócio-culturais. Nem lá, nem cá. FHC estabilizou a inflação, mas determinou à classe-média certa submissão aos interesses da elite financeira internacional. Lula revelou-se ambidestro, e a tal política de esquerda por muitas vezes mais se perde ao centro de um vazio revolucionário, sem contexto político e histórico.

Mas ainda iremos votar, e dois são os caminhos para essa escolha: no homem, como com Lula, ou no partido, como com FHC. Para tanto, é preciso que a população seja esclarecida de um primordial elemento: proposta de governo. Quando temos, então, a capacidade de avaliar quais as diretrizes políticas serão adotadas e os princípios em que se baseiam, para confrontar com nossas expectativas e ideologias.

E é exatamente essa possibilidade que agora os congressistas se unem para destruir. A aprovação recente na Câmara, em primeiro turno, da emenda constitucional que acaba com a Verticalização, explicita a vocação dos nossos atuais representantes. A lei em questão, aplicada na eleição de 2002, determina às eleições estaduais a mesma coligação realizada entre os partidos para a eleição nacional. E é contra isso que os deputados se colocam, incluindo nosso presidente: "É melhor escancarar e ver quem é quem neste país, quem apóia quem, quem está com quem à luz do dia, e não você ficar pensando que alguém está com você e, depois, não está. Então, é melhor acabar logo isso e fazer as coisas muito abertas, muito à vontade".

A capacidade de alianças heterogêneas finaliza qualquer importância do partido construir uma reflexão política própria gerando propostas originais que o diferencie dos concorrentes. Vale tudo. Ser contra o partido na candidatura à Presidência, mas a favor para o Governo Estadual. Como é possível ser a favor e contra uma postura simultaneamente? Concordar e discordar? Apoiar e ser oposição?

O que se busca hoje é construir uma maquinaria política aonde o pensamento reflexivo não seja significativo. Importa o poder, o controle, a supremacia de uma suposta governabilidade. Essa, que certamente sofrerá as mazelas da incoerência de suas companhias ambíguas, devedora nas duas pontas de uma mesma corda. Enforcamento inevitável...

Votar em quem? Tanto faz. Serão partes de um mesmo partido, amarrados uns aos outros por condições diversas e interesses regionais menores. Pouco significa o nome do candidato, então, pois sua postura depois de eleito se restringirá aos acordos partidários. Nada representa o partido, já que suas diretrizes se camuflam em acordos contraditórios, conflitantes e momentâneos.

Talvez devêssemos trocar nossas cédulas de votação e urnas eletrônicas dispostas nas escolas, igrejas e clubes, por confrontos de ‘dois ou um’ em praças e parques. Um campeonato nacional... Ao menos nos divertiríamos um instante mais sonhando um pouco com dias melhores, já que os enforcados, inevitavelmente, seremos nós.