Antro Particular

29 abril 2010

EMVÃO por Lenise Pinheiro

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DISTANCIAMENTO LIMPO

Muitos são os espetáculos que tratam o homem a partir de contextos regionais. A dramaturgia recente busca tratar no homem regional suas metáforas daquilo que vem a ser as mazelas contemporâneas. Não cabe aqui equalizar a todos como se fossem os mesmos. Cada perfil traz seu contexto e soluções, o que torna impossível agrupar os trabalhos de outra maneira, que não apenas pelo subterfúgio da temática. A questão real é outra, portanto. Por que cada vez mais a regionalização do sujeito é a escolha de nossa dramaturgia?

Inicialmente é preciso compreender as circunstâncias que se assume com essa escolha. Regionalizar significa dimensionar o sujeito a um contexto específico, mais do que localizá-lo dentro de uma cultura. O homem urbano paulista é tanto quanto regionalizado quanto o nordestino ou o trabalhador do campo. São eles igualmente condicionados a uma localização que traduz sua identidade, ou, ao menos, a integridade simbólica que a compõe. A perspectiva de o outro pertencer à outra esfera necessita olhar o centro a partir de si, do próprio observador. O outro lá está porque aqui estou eu. Essa relação unidirecional vetorizada por quem observa não é nova, surge com a criação da perspectiva e o ponto de fuga no Renascimento, quando o homem passa a centralizar o universo e não mais o divino onipresente, deslocalizado e distanciado.

No teatro, ainda, o outro é parte determinante do palco desde sempre. Assistir ao ator nada mais é do que assistir ao outro. Assim, a importância da tragédia moralizar ao perceber, no exercício do espelhamento do espectador, a possibilidade de educá-lo, revelar-lhe, corrigi-lo. Se a tragédia fora a excelência do espelho antigo, será o drama medieval a melhor forma de refletir o homem, há começar pelo sofrimento cristão e a finitude do ser frente à eternidade divinizada em perdão. De lá pra cá, quase sempre a dramaturgia tem optado pela regionalização.

Quase sempre, insisto no quase, pois o teatro pós-dramático segue pela contramão do criar reflexos morais, apresentando o sujeito descentralizado e mais pertencente à ambiência a-histórica. Se tanto a tragédia quanto o drama localizam o homem, o contemporâneo, todavia, ao rever o contexto de local – em global, universal, glocal, desterritorialição, zona autônima, espaço virtual, rizoma, presença sugerida, não-local, realidade cognitiva e outros – encaixam o sujeito em outra qualidade de contexto, este mais político em sua idéia de pertencimento do que aquele antropológico de outrora.

Mas se é especificidade da linguagem teatral a contextualização espaço-tempo-cultural do outro, o que, verdadeiramente, há de tão problemático? O outro e Eu, ainda que diferenças existam (obviamente) pressupõe julgar distanciado do contexto, e qualquer julgamento nada mais é do que a compreensão do possuir capacidades para analisar criticamente. E isso só é possível ao nos particularizarmos atribuindo relevância ao nosso julgamento, o que, em certa medida, faz-nos acreditar necessários e “melhores”.

Quanto à dramaturgia, esta passa a olhar o outro distanciado de quem a cria, da mão que a escreve. Esse escrever sem se sujar faz com que também o espectador saia imaculado da sala de espetáculo, ou traga-lhe algum efeito através da moral discorrida pela narrativa. Não me interessa ir ao teatro receber uma lição, mas desenvolvê-la conjuntamente à falta de respostas propostas pelos artistas. De toda forma, há teatro pra todos, e isso é ótimo. Para os que querem se perder em incertezas e para os que precisam de traduções para se encontrar, ainda que para estes o melhor caminho seja mesmo ver o outro como alguém que não a si.

A dramaturgia regionalista esbarra ainda em outra problemática. Se for opção retratar o outro, faz-se preciso retratar aquilo que o contextualiza, o que, salvas raríssimas exceções, condiciona a representação à ilustração daquilo que se imagina ser. Falta de pesquisa à parte, boa parcela desses espetáculos traduz o outro por tipos e caricaturas de naturalismo técnico e exibicionista. Nesse saber construir o personagem, na capacidade em dominar o verossímil, nos deparamos com a ausência de exposição do intérprete. Há no “bem feito” igual anulação do sujeito que agora é também o centro para outro, entendendo “centro” por ator e “outro” personagem. Novamente o artista serve, demonstra, explica, mas não o é. Essa localização, esse lugar, essa regionalização do personagem conduz ao não compartilhamento do Eu com o Construído, e nisso sobre a distância travestida por técnica e precisão.

A regionalização em nossa dramaturgia, portanto, gradativamente distancia o artista do contexto deslocado do contemporâneo, enxergando o teatro como representação mimética de uma realidade que absolutamente não é definida por contornos. O outro, o de lá, enfim, é parte de nós. Caricaturar essa condição pelo apreço de uma representação literal ou supostamente observadora é limitar ao contrário do que constrói o homem de hoje.

17 abril 2010

VI ENCONTRO PERFORMANCE

com participação de Patrick Grant

EMVÃO FOTOGRAFADO POR BRUNA SANCHES

+ FOTOS E INFORMAÇÕES::
http://antroexposto.blogspot.com/2010/04/emvao-por-bruna-sanches.html

08 abril 2010

ESPELHOS NO ESCURO

O que se esperar de uma crítica? Sobretudo porque são dois os pólos - artistas e público -, a resposta não é nada simples. Como pode ser possível dialogar com extremidades simultaneamente? No Brasil de outras épocas, as resenhas críticas ocupavam espaços mais generosos nos jornais e, aos seus modos, talhavam seus contatos com ambos os leitores. E hoje? Nos últimos dias reuni jornais não lidos, sites não visitados, e me debrucei sobre o que está sendo escrito sobre teatro. Páginas após páginas, reais ou virtuais, a abordagem pragmática de objetivismo educativo (quando não explicativo, apenas) se revelara mecanismo dominante, ou estilo, se preferirem. No discurso das certezas, a crítica atual prostra-se à facilidade do “entendi, por isso acho que...”. Essa necessidade de mostrar conhecimento, de traduzir ao público-leitor o que de certo e equivocado há em um trabalho, faz do olhar especializado exposição determinante sobre o analisado, ainda que o que estejamos lendo seja a qualidade de uma compreensão subjetiva do trabalho, e que, por ser subjetiva, passível de discordâncias. E aí reside o nó. Na comparação emotiva entre as subjetivas leituras de um trabalho, no compreender que está no outro (crítico) o absoluto, mas que também o leitor e seu ponto de vista, sobretudo se discordante, carrega a verdadeira interpretação. Ou seja, pouco importa se o crítico pensa aquilo ou isso, para o leitor, a crítica se limita a alguém que tem espaço na mídia e que poderia ser qualquer um. Será mesmo?

A resposta em defensiva é o que lemos em muitas das resenhas atuais: o exibicionismo de conhecimento capaz de reunir datas, nomes, fatos, história em vinte e poucas linhas, quando muito. Ao fim, portanto, as críticas se aproximam a compêndios de informação enciclopédica, do que, necessariamente, discursos e observações. E do que me adianta algo que depois de lido descarto com um simplório “eu não acho isso”?

A falência da crítica reflete a desimportância do diálogo no contemporâneo em seus diversos percursos. Por um lado, as críticas se limitam a traduzir e explicar os espetáculos, usando de contextualizações comparativas, por outro, abandonam os artistas ao se resumirem a olhares posicionados a partir de um julgamento antecipado. Como deveria ter sido, o porquê está certo, o que faz sentido... O julgamento domina as resenhas sobre qual princípio? O da expectativa idealizada do observador. E nessa centralização do ponto original, do valor correto, o crítico se afasta da própria cena, distancia-se do teatro e do artista, enquanto busca enxergar de longe seu reflexo. O que parece ser a função da crítica – trazer um olhar preparado sobre o outro –, na verdade, se revela distorção. Não cabe ao crítico julgar, mas entender. E não basta entender o todo, mas os porquês ativados no resultante final, que mesmo os artistas não perceberam. É preciso que o crítico se faça o outro e traga ao criador a dimensão de sua cria. Positiva ou não, uma crítica deve abster-se de achismos para se permitir contaminável pela verdade da sugestão oferecida. Somente assim, se descobrindo o outro nele mesmo, é que o crítico será capaz de julgar. Não como juiz imparcial, mas na parcialidade do autojulgamento, agora que ele se travestiu do próprio artista.

Não encontrei nas críticas e resenhas que li quem se permitiu ser o outro, apenas quem do outro fez um outro de si. E não me parece ser esse o caminho mais saudável nem para a crítica, nem para o artista, nem para o público. É preciso virar o espelho para o lado certo, antes de qualquer tentativa de criar reflexos.

Um pouco mais longe, há um excessivo tom de competição ginasial nas críticas recentes. O novo melhor, a revelação, o possível gênio... Enquanto a crítica se colocar como prêmio, numa óbvia tentativa de se fazer ainda necessária, os artistas serão educados a se confrontarem, à disputa pelo lugar mais alto no pódio, viciados àquilo que o critico determinou (através de toda subjetividade abordada anteriormente) por correto, acerto, melhor etc. Se muito dessa disputinha patética que envolve os artistas e coletivos, é sim reflexo de sobrevivência mercadológica, é também porque o desenho desse mercado se faz e formaliza através de pareceristas supostamente preparados ao julgo e escolha. E não há como ignorar ser a mídia a face pública do mercado cultural. E, por conseguinte, o crítico ser parecerista. É evidente que a mídia tem lá seus interesses em manter ou destronar, muito mais do que trazer princípios para reflexão, transformando o crítico em marionete, cujo principal valor está na submissão como troca por sua existência. Sem mídia, sem crítica. Sem este, sem parâmetro comparativo. Parece uma boa idéia, não é? Mas sem isso, sem reflexões e diálogos. O que se esperar de uma crítica, então? Nada. Apenas uma boa conversa de bar. A convivência ao redor de uma mesa centrada, não em um botequim, mas no desejo da descoberta, do desafio dialético e efêmero, que dura o intervalo entre o sair de um espetáculo e o tocar as teclas do computador. Tratar o diálogo como uma conversa inesperada é a grandeza maior que a crítica pode oferecer a artista e público. Ao primeiro, o desafio de se reconhecer onde não se percebia existir, ao segundo, a sensação de participação em algo relevante.

A responsabilidade, portanto, da crítica vai além da análise. É ela quem expõe as entrelinhas de uma época e subtrai os discursos que a desenharão a história. Face ao impossível, hoje, enquanto não nos atermos à importância da cultura na constituição do sujeito, não teremos a cultura como fundamental nos meios de comunicação e, portanto, a crítica estará condicionada a luxo editorial. O que se esperar de uma crítica, talvez não seja a pergunta certa, e sim por que as ter. E isso, ainda que enxergue respostas, não consigo responder. Convivamos, então, na maneira que der...