Antro Particular

16 outubro 2010

tropa de elite...

Uma das poucas coisas que valeram em minha faculdade foi o dia em que Eduardo Brandão, hoje galerista da Vermelho, mas na época professor de fotografia no curso de artes plásticas, sentenciou por uma única frase os trabalhos dos alunos que insistiam em permanecer após a aula. Eram poucos, alguns de outros cursos, que, ao redor da mesa, apresentavam suas pesquisas e encaravam as mais profundas análises do coletivo. Mas essa resenha não se trata de rememorar esses encontros, sobretudo porque, verdadeiramente, nunca apresentei algo meu. Minha permanência se dava pela verticalização dos estudos e pela capacidade de Brandão em destigmatizar valores. E foi numa dessas rodas informais que a frase surgiu como um golpe final, algo que norteou minha relação com o fazer artístico e a responsabilidade de qualquer discurso que possa vir a empreender: a realidade é sempre mais cruel do que qualquer representação. A frase não é minha, ainda que o inconsciente a venha lapidando nesses últimos dez anos. Mas garanto que foi algo por ai...

Saio do cinema, após assistir Tropa de Elite 2, com duas questões: seu existir e sua função.

A primeira sensação faz ressurgir a frase de Brandão. É evidente que a realidade deve ser infinitamente pior, afinal a câmera e a necessidade de delinear a narrativa sob o prisma de uma história retiram da problemática os múltiplos e simultâneos submundos que a compõe. Todavia, tornar o problema vivo, ainda que romanceado, dá ao existir importância sobre o reconhecer sua existência a partir da observação. Confesso que Tropa 1 não havia me comovido, tampouco instigado um estado de aproximação com a realidade de maneira tão impetuosa. Talvez porque houvesse nele certo objetivismo na condução do discurso e certa ingenuidade às escolhas narrativas. Nele, Nascimento, interpretado por Wagner Moura, mais me parece disposto ao desenvolvimento e afirmação do talento do ator do que necessariamente à trama, centrando na qualidade do seu trabalho como veia de acesso ao filme. E tenho certo incômodo quando isso acontece, quando saio de uma sala de cinema com a sensação de o filme servir ao artista e não o seu contrário. Tropa 1 não é um filme ruim, pelo contrário, tem valor como discurso e trouxe sua eficiência para o cinema nacional cada vez mais imbecilizado. – pausa... antes da apresentação de Tropa 2, chega a constranger a quantidade de filmes nacionais com temáticas engraçadinhas, trocadilhescas, românticas com intuito de fazer rir e descontrair. – Surge, então, Tropa 2. Nascimento e Wagner se recolocam na trama de modo preciso, à serviço da narrativa, amadurecidos, personagem e ator, pelos anos que os separaram do fazer inicial. O filme escapa da ação como choque de denúncia e utiliza a necessidade da denúncia como preceito para a ação, o que torna saboroso em ambos aspectos. Tropa 1 e 2 se fundem na justificativa de serem inseparáveis, como um prólogo onde se contextualiza o tempo e as figuras que o desenham e sua continuação como aprofundamento da história. Juntos, Tropa de Elite se fortalece como proposição crítica de nossa condição, enquanto a resenha da maneira mais próxima do plausível. Seria bom assistir aos dois filmes em seqüência.

Se a própria narrativa do segundo justifica as limitações do primeiro, enquanto o inicial justifica o desenvolvimento do atual, ainda resta a pergunta sobre seu existir em aspectos mais profundos capazes de ir além do mercadológico. O díptico reorganiza certos preceitos fundamentais da linguagem. Reúne a ficção à documentação por vias mais complexas. Sabemos que o filme é uma ficção, mas sabemos, ainda que não de maneira explícita, que a ficção em si é a representação possível de uma verdade. E representar a verdade, em qualquer estado de apropriação, dando a ela o contexto narrativo de uma experiência vivencial, é determinar-lhe o contexto de documentação. Por isso Tropa é mais do que uma ficção. Seu existir permeia o desejo de documentar uma verdade implícita na ficcionalização manipulada da realidade pelo mesmo poder que denuncia. Trata a verdade oculta como material real, fazendo uso deste para uma espécie de inventariado da condição social.

Mas cabe mais ao documentário romanceado, seja ele ficcional (O Assassinato de George W. Busch) ou ficcionalizado a partir da realidade (Tropa). E é nisso que me pego questionando o segundo ponto levantado anteriormente: sua função.

Ainda que todo produto cultural tenha por finalidade o servir, sejam as construções ou desconstruções de conceitos e valores, seja ao utilitarismo do entretenimento momentâneo casual, ainda assim, a opção pela linguagem documental perpassa pela intenção de revelação e/ou esclarecimento. No caso de Tropa de Elite, essa é a função maior, trazer à tona uma reflexão provocativa sobre a manipulação da violência como poder instituído de permanência e dominância. E a cumpre cada vez melhor. Todavia, se revela ou esclarece tendo por último anseio alguma outra intenção. Por que mexer em tabus, tratar de questões insolúveis, incômodas, se não para desenvolver no sujeito a alteração de sua postura cotidiana, de suas certezas e alienações? E aí Tropa de Elite fala sozinho. Não por culpa sua, mas da própria passividade do sujeito com qual dialoga. O que pode o público aprender com o filme se qualquer atitude o levará a igual desfecho apontado pelo próprio filme? Como pode o público gerar uma reação concreta ao que assiste se as ações são impossíveis frente a potência do descontrole real? Tropa de Elite explode em nossa face mais do que a miséria do poder, expõe a impossibilidade de existirmos em outras condições. Nascimento é o herói de uma ficção impossível dentro de uma documentação romanceada de uma realidade imutável e adaptável ao sabor do que for necessário. Mas não somos heróis. Somos comuns. O que os filmes documentam, portanto, não são apenas a violência, a corrupção, o terror, o descontrole. O mais cruel em Tropa de Elite é a documentação inefável do horror que se tornara o humano.