Antro Particular

31 janeiro 2010

SOBRE A RESPONSABILIDADE DA ARTE SER IRRESPONSÁVEL

Comprei o livro As Vidas dos Artistas, de Calvin Tomkins. Sim, sou ligado a certa dose de fofocas, admito, mas nesse caso a curiosidade estava mais na proposição da abordagem. A maneira como Tomkins trabalha o olhar crítico sobre a trajetória de cada artista analisado propõem o diferencial: partir da vida de cada um, para se compreender a estruturação simbólica e narrativa de seus trabalhos. Não que olhar a biografia seja alguma novidade, mas o como o jornalista se incluiu e personalizou a percepção, isso sim é bem raro. Um toque de esperteza com sabores de criatividade. O livro traduz, em certo aspecto, as diretrizes primeiras de cada artista investigado, além de nos apresentar suas personas dentro e fora das salas de exposições.

Esta resenha, contudo, não trata de analisar o livro nem os comentários sobre seu conteúdo e princípios – há muitas já em jornais, ainda que quase todas estejam viciadas à percepção narcisista de como “deveria ter sido feito”, e muito pouco sobre o que nele é trazido. Julgamentos das escolhas dos artistas, julgamentos das posturas durante as entrevistas, julgamentos sobre as conclusões do entrevistador... Enfim, julgamentos e opiniões não faltam. E tenho certa preguiça com as colunas de artes atuais e seus cômodos modismos de como se deve, como se pode, como se falar sobre...

Depois de rodar por aí e retornar a São Paulo, e com a leitura de As Vidas dos Artistas, peguei-me em crise com os artistas locais. Novamente, eu diria. Novamente, pois, uma década atrás, lembro-me ter passado pela mesma sensação, a de que os artistas brasileiros não têm o que dizer, e, quando o tem, não sabem como. O que então era um vômito arrogante de lamentações nacionalistas com encantamentos recentes de um jovem estudante de artes, hoje me confunde ao se mostrar ainda pertinente, mesmo não tão jovem e ingênuo (ainda que ingenuidade seja uma questão comparativa). Dois ângulos, portanto, necessitam ser observados: convívio e visita.

É evidente que o fato de não conviver com os artistas das exposições européias dá-lhes certo sabor de frescor, enquanto os locais, frente à própria disponibilidade de acesso e freqüência, tornam-se cansativos e rotineiros. A não convivência com os repertórios simbólicos torna-os algo a ser descoberto, enquanto o encontro constante limita o discurso à redundância. Descobrir um artista, uma exposição, transita entre a ingenuidade lúdica da infância e o aprimoramento do vocabulário simbólico. Ainda mais para nós, uma cultura que valoriza e educa o conhecimento não como algo acumulativo, mas substitutivo. A perspectiva de ser o convívio dificultador para nossa aproximação com os artistas locais expõe dois problemas: a repetição óbvia do vocabulário empregado, sua fácil decifração, e o reconhecimento imediato do discurso, em primeiro lugar, e, em segundo, a frustração frente o sentimento de aprendizagem. A questão é que está nela a possibilidade do artista compor um diálogo mais interessante com o observador, tendo sua obra como interlocução de percepções, já que a surpresa sustenta interesse e reflexão. É preciso entender que o aprendizado não está condicionado à absorção de um conhecimento ainda não adquirido. Ao contrário. O aprender está na disponibilidade da obra em desvirtuar ângulos previsíveis seja sobre o que for: da materialidade própria que a compõe ao particularismo de como o artista enxerga os conceitos ou de como são tratados. O olhar do artista incomoda o observador por sua capacidade em ser particular, e aí sim o observador pode ser tocado às concordâncias e discordâncias, até então impróprias de sua identidade sócio-cultural. Não é o que encontramos em nossas galerias e museus. A obviedade do discurso faz com que o vocabulário simbólico dos nossos artistas seja irremediavelmente traduzível quase que por imediato, como se sua história fosse sempre simplificada a um recurso estético encaixotado por um conceito reproduzível e copiado de si mesmo. Haveria nisso a defesa de ser a cópia de si mesmo fator identitário, o elo próprio para constituir assinatura, e que, por ser autoral, determinaria igual finalização às diversas criações. Entretanto, assinar é diferente de copiar. A assinatura implica em desenvolver-se sobre a perspectiva de uma base escolhida ou natural, intelectualizada ou instintiva, enquanto a cópia se apropria de princípios reconhecidos posteriormente e as assume deliberadamente com a intenção de repetir o acerto. Dizer que isso não aconteça também com os artistas de lá é ser ingênuo. Quase sempre a repetição aproxima-se da afirmação de uma assinatura e esta à segurança da aceitação conquistada. Porém, de modo geral, os de lá se diferenciam dos nossos em suas coragens em manipular suas assinaturas e, assim, surpreender por ângulos que os apresentem diferentemente do que se espera a princípio. Os daqui limitam-se, quase sempre, à manutenção segura desprovida de surpresas, onde a face esperada é o ponto certo do vir e a fala se traveste de revisitação forjada, expondo o convívio com suas obras como um fato desnecessário dentro de uma rotina de diálogo maior.

O segundo ponto, Visita, refere-se à maneira como a arte é abordada, ofertada no mercado institucional. Há nas exposições de lá o agigantar da surpresa. Muitas vezes os artistas são os mesmos de sempre, e mesmo as obras já foram visitadas. Mas a contextualização, a apresentação e diálogo simbólico rearranjados tornam o reencontro uma nova descoberta sobre o mesmo. No início dos anos 2000, fui surpreendido pela primeira vez por essa responsabilidade do contorcionismo simbólico relacional ao entrar na recém criada Tate Modern. As salas-ambientes davam conta do inesperado: valorizar individualmente cada artista exposto (e não meramente a obra) enquanto o colocava em diálogo com outros, cujos discursos amplificavam suas compreensões. Como por exemplo, pinturas de Francis Bacon e aquarelas de Marlene Dumas. Enquanto Bacon confrontava o excesso de suas figuras, Dumas limitava-se ao esvaziamento e sublimação da imagem liquidificada em transparências e sutilezas. E, entre um e outra, o observador se surpreendia refém de um discurso mais vertical que o conduzia para contrapor a representação do indivíduo social e cultural. Em um lado Bacon fortalecia suas dores agora reconhecíveis também no silenciar pelo excesso, pelas cores fortes, pelo calar os olhos trazendo delicadezas de configurações psicológicas que exigiam enxerga-lo a partir da compreensão de Dumas e seu olhar sentimental. No outro, Dumas ganhava a percepção da agressão baconiana nos gestos íntimos que invadiam suas cores pastéis, como se a escolha pelo não posicionamento explícito da dor fosse de fato a construção de um pedido de socorro pelo desaparecimento político de seus discursos, e, portanto, politizados pela escolha de ausências. Ambos se valorizavam com as contradições complementares, e ao observador sobrava o reencontro através de sua própria conclusão.

Quando falo sobre Visita, falo sobre a importância de trazermos o novo ao igual, apenas assim avançaremos nas mais profundas camadas e poderemos ser surpreendidos, ainda que o objeto em si seja sempre o mesmo. Essa ação, comum na construção de exposições no exterior, é frágil e quase sempre ineficaz por aqui.

O que dizer de uma miniatura de carrinho de supermercado lotado por latinhas em uma sala que tem como referencial simbólico representações medievais de Cristo, em um museu de origem eclesiástica e exposição idealizada pelo próprio museu? Ou um livro de Boltanski com fotografias de judeus desaparecidos durante a Segunda Guerra em uma sala sobre relicário e santificação? Uma escultura-objeto com coca-cola junto a cálices de missa? A bíblia e livros de grafismos abstratos? O misticismo mítico de Beuys e a crucificação? Sim, isso existe. A recente exposição ficava em edifício moderno de arquitetura de Zumthor, levantado sobre ruínas de uma igreja medieval em Colônia, Alemanha: Museu Kolumba. Todos os trabalhos pertencem à coleção da instituição que rearranja as obras dando-lhes novos contextos e interpretações. Não há outra importância que não a própria obra, o diálogo entre arte e história, entendendo cada qual como deve ser. Não há divergência entre “fato religioso” e “criação crítica”, tampouco o temor de que ambos se contaminem e se transformem em “criação da história” e “crítica religiosa”. Cabe à fé do visitante interagir com os contextos, estar dentre os dois parâmetros. Ao fiel, a arte traduz a complexidade sígnica dos valores religiosos em suas origens para metáforas críticas contemporâneas de igual reflexão; para os ateus, o sagrado se projeta na compreensão de sua importância simbólica como constituição de interpretações e acessos possíveis da história e do Homem.

Tanto na Tate Modern quanto no Museu Kolumba o que se propõe é esgarçar as estruturas cristalizadas de como deve a arte ser absorvida. No britânico, a condução do observador visa o encontro com o artista mais do que com sua obra; a comparação por vezes contraditória, incompleta, leva-nos a suspeitar dos conceitos e estratégias estéticas; a técnica se revela produto de uma postura mais crítica sobre o discurso e o fazer ganha valor por sua capacidade de construção perceptiva. No museu alemão, o artista é anulado para que a obra seja suficientemente capaz de solidificar diálogos improváveis; há no fazer a importância do produto independente que supera a proposição e se consolida maior que o próprio desejo original do artista. O mais importante, todavia, é o fato de que em ambos o observador é que dá as notas finais aos diálogos, estando ele no centro da justificativa para a existência das próprias exposições.

Por aqui, nossas exposições se fundamentam pela pouca ou nenhuma capacidade em ampliar percepções que caminhem além do literal ou das reflexões mais ordinárias (e assim permitir que o observador construa sua própria leitura) e a falta de criatividade em resignificar, tendo como base a preocupação errônea da responsabilidade do politicamente correto, seja no dizer (portanto intelectualmente), seja na desconstrução simbólica (portanto esteticamente). Além do processo de cenografização emergente que distancia o observador ainda mais, tornando-o um visitante voyeur e absolutamente desnecessário à existência do discurso. Isso não significa que devemos nos condicionar ao curadorismo, como nas décadas passadas, e assumir suas interpretações de obras e artistas como novas verdades, mas a maneira como ofertamos ao visitante a própria arte e artistas deveria surgir de possibilidades mais irresponsáveis no dialogar com os elementos dando-lhes a capacidade da renovação. Enquanto nos aprisionarmos a responsabilidade da tradução, atuaremos mais próximos da educação e não da aprendizagem. Educar pressupõe que aquilo que é trazido ao outro é o correto e deve ser absorvido nos limites do que se propõe ser; aprender, como escrito anteriormente, deixa livre o conhecimento para ser absorvido dentro de valores e perspectivas de cada leitor. Nossas exposições, inclusive as bienais mais recentes (o que nos tira uma década de aprendizagem em “favor” de nossa educação, a partir de como os curadores acreditavam ser correto compreendermos as obras e as teorias abordadas), sofrem da fragilidade da baixa ousadia criativa em construir surpresas e dar à arte liberdade. A igual ausência de posicionamento daqueles que deveriam ser a observação mais crítica de todo o processo, sejam jornalistas, críticos ou os próprios artistas, tem limitado nossas exposições a uma espécie de feira de vaidade intelectual, quando o discurso bastaria para sustentar qualquer argumentação e contramão. Há aí um enorme equívoco. Nossos artistas são excessivamente repetitivos, nossos curadores distraídos de diálogos mais provocativos, nossos críticos narcisistas e desinteressados. Ou seja, a arte brasileira, hoje, padece de mesmice, pouca criatividade e falta de valor.

Em As Vidas dos Artistas, Tomkins, à sua maneira, traça estratégias de convívios com artistas de sua escolha, dentro de parâmetros absolutamente pessoais que não ficam claros (e nem precisam, já que são pessoais), e descortina os entrevistados oferecendo ao leitor suaves visitas, eficientes o suficiente para nos entregar surpresas dentro da previsibilidade. A recepção crítica do livro, as controversas sobre seus métodos, sobre os artistas eleitos, só faz evidenciar o quanto distante estamos da disponibilidade ao outro e centrados em nossos flácidos umbigos. Nem artistas, e seus maneirismos óbvios sem revisões, nem crítica estão realmente dispostos a fazer da arte mecanismo de aprendizagem despropositado e aleatório, sem qualquer manipulação de seu julgamento. O problema é que sem isso, a arte se faz mercado de idéias políticas e engajamentos específicos que, como já se percebe, datam-se há um tempo volúvel, transitando entre a incapacidade de manter-se interessante e dialógica e a desnecessidade de acompanhamento. Ao fim, nessa tentativa de educar o observador todo o tempo e lhe oferecer messianicamente os entendimentos do que “deve” ser entendido, o conhecimento se solidifica em regras e estruturas dogmáticas. E nada menos Arte do que isso.

SUPERIORES: e a simples vontade de estar em cena

Uma mistura de um pouco de tudo, de mímica à teatro físico, de desconstruções da palavra à coreografias quase circenses. É assim que se revela, logo de início, o espetáculo Superiores, do carioca Grupo In-animados. Uma coletânea de referências recentes que bem pode ser traduzida como sendo a junção entre FormiguinhasZ e O dia em que a Terra parou. O projeto de encenar uma ficção científica ganha sabor ao tempo. É preciso estar disposto que, ao ritmo do espetáculo, a narrativa se revele e possa levar o espectador a se aventurar. Mas o que parece ser uma dificultação narcisista, ao ser compreendida mostra-se essencial, com capacidades criativa e técnica singulares.

Com um elenco irregular, porém cumplice ao projeto e disposto fazê-lo valer a pena, a direção de Miguel Thiré, também o dramaturgo, traça um painel interessante sobre como podemos nos relacionar com o contar histórias sem que sejam obrigados ao óbvio tão explorado ultimamente. Thiré descortina a fabricação da cena, dos personagens, do processo e traduz de maneira singular o confronto entre a humanidade e seus supostos superiores e inferiores. Suposto na medida em que a posição em si é determinada a partir do parâmetro de quem se coloca ao centro, e isso é bastante relativizado durante toda a narrativa. São planos que se congelam. Frames que se sobrepõem. Segundos relidos por outros ângulos, por cantos, por estados, por dimensões. A inteligente redimensionalização dos personagens, ora agigantados para aqueles que representam, ora diminutos, faz com que o ritmo do espetáculo seja sempre a expectativa da próxima solução cênica. A infantilização dos gestos e das soluções dramáticas, propositadamente trazidas ao ridículo, dá o sabor cômico àquilo que se mostra dramático. Superiores é desses espetáculos cuja pretensão dá-se no querer reencontrar o teatro. E isso por si só já o torna um valor único.

Quem disse que para ser experimental um trabalho necessita ser insuportavelmente intraduzível? Superiores encontra na facilidade do enredo simples dos filmes mais comerciais de ficção científica os artifícios perfeitos para fazer da cena um real experimento teatral, tanto para o ator quanto para o público.

Duas coisas me instigam quando resolvo assistir uma peça, duas possibilidades: qual é a história e como ela será contada. A frustação ocorre apenas quando ambos os pontos são improdutivos, quando uma narrativa óbvia é trazida à cena de maneira mais óbvia ainda. Em Superiores, a obviedade da narrativa serve ao deleite de descobrir pelo contar a originalidade da inquietação artística da trupe. E isso é fundamental para conduzir a percepção a outros labirintos. O dentro do dentro já fora amplamente explorado na literatura e no cinema de maneira a não construir mais qualquer novidade estrutural, contudo, não no modo como Thiré o propõe. E encarar esse desconhecido faz do espectador um cúmplice mais pertinente, mais envolvido e fundamental ao riso fácil e bem-vindo.

Superiores fala da opressão, da submissão artificializada pela força que aplicamos e sofremos nos dias de hoje. Recoloca o Homem numa dimensão intermediária mas não apenas no seu sentido literal de "inferior" com extraterrestres "superiores". Arregaça as mangas e salta pra cima da liturgia do Poder institucionalizado pelas convenções sociais, dos discursos impertinentes e desnecessários. Troca a palavra pela conveniência de estruturas sonoras individualizadas, acrescidas de pequenas indicações de seus sentidos no nosso idioma, ou melhor, naquilo que denominamos ser nossa lingua.

A onomatopeia, presente desde a entrada dos atores em cena, ganha condições de interpretações ao quase reconhecimento dos fraseamentos, da ótima mimese das circunstâncias e da eficiente direção e escolha de como conduzir tudo sobre o palco. Atrás de uma linha desenhada, ainda na primeira cena, os personagens são atores novamente, e esse vai-e-vem quase brechtiano de nos avisar todo o tempo que o círculo central é uma encenação, amplifica ainda mais a dimensão ficcional da narrativa. O que assistimos é a ficcionalização de uma ficcção, a teatralização de uma mentira. Entretanto, os seus dizeres são, antes de tudo, a tradução da mediocridade do homem contemporâneo em sua certeza ilusória de superioridade sobre tudo e todos.

Um único objeto é trazido à cena, uma caixa transparente retangular. E nada mais pertinente para uma montagem esvaziada de outros códigos que uma caixa transparente dentro da caixa preta do palco.

A peça peca apenas na escolha dos figurinos, valeria um pouco mais de carinho e cuidado por aí, mas, ao fim, de que servem as roupas senão para construir valores e redesenhar sistemas igualmente de superioridade?

26 janeiro 2010

amanhã... quarta!

09 janeiro 2010

A SOUVENIRIZAÇÃO DA HISTÓRIA

Sou de um tempo recentemente antigo, de quando as fotografias levavam semanas para serem reveladas e apreciadas. Cada imagem exigia a certeza de um desejo, a projeção de uma expectativa espelhada à construção da memória que haveria de ficar e perpetuar a experiência. Sou de um tempo quando a elaboração do passado tinha em vista sua capacidade de planejar como as lembranças deveriam ser subjetivadas, como a história poderia ser recriada para o momento em que os fatos estivessem limitados às imagens materializadas em instantâneos. Hoje, a participação na história desvincula-se tanto do desejo quanto do espelhamento do sujeito. Perdemos nesse breve meio de tempo a capacidade em observar o todo após sua conclusão, educados que fomos pelos descartáveis e moldes identitários controlados. Distanciamo-nos cada vez mais da tentativa de pertencer à história que não através de um breve comentário da mesma sem qualquer vínculo emocional. O tempo, como fundamento de consolidação narrativa onde nos incluímos em iguais, estrebucha vandalizado pela imprudência de nosso isolamento, nossa limitação ao fazer imediato, o agora, e nos carrega ao desencontro de uma subjetividade maior pertinente e conseqüencial.

Olhar o tempo como manifestação sobre o sujeito exige certa abstração e concentração sobre fundamentos que, aparentemente, contrariam a normalidade de seu entendimento comum, afinal a mecânica do relógio dependurado na parede parece nos provar que o tempo tem sim sua concretude e discuti-la seria uma enorme ‘perda de tempo’. Mas se encararmos por outra perspectiva, pelo viés do sujeito, chegaremos ao impasse ‘manifestação’ versus ‘percepção’. Quando notado o tempo, este não pode mais ser o mesmo, já que a própria ação de perceber está limitada à consciência de sua percepção, e isso leva milésimos de uma fração. Desde a luz refletida sobre o objeto, seu reflexo na retina, a transposição para imagem em nosso cérebro e seu reconhecimento, tudo leva tempo, ainda que seja a tal fração. Percebemos algo porque compreendemos e deciframos aquilo que constitui o signo, ou seja, sua informação. Portanto o que percebemos é o passado da informação em si e nunca ela em seu tempo presente. Feito estrelas que observamos e cujo brilho reflete o seu ontem, podendo chegar a expor sua existência quando na verdade não mais existem. Entretanto, o que seria a existência, então, a materialidade presencial ou a manifestação reconhecida? Do que importa algo que não se manifesta? E do que serve um reconhecimento de algo inexistente? A existência em si está na dimensão temporal que se dá ao objeto. Ao reconhecer nele a própria manifestação do tempo, ele só pode ser propriamente real, ainda que a virtualização dessa realidade dobre o tempo sobre ele mesmo. E esse tempo da dimensão cósmica, alargado pelas distâncias, pode igualmente ser transposto como o tempo de nossa consciência frente à informação em si. Devemos então compreender o passado como único alicerce concreto de realidade e dividir a escala temporal tal como a convencionamos – passado, presente e futuro – em passado histórico, revelação do passado e desejo de passado, respectivamente.

No passado histórico, mais próximo ao que conhecemos por passado, reconhecemos tudo aquilo que foi, teve, serviu, existiu, fez-se por fatos, sensações e emoções de toda ordem compondo a narrativa de nossa subjetividade como que vista independentemente de nós mesmo, algo entre aquilo que nos constituiu até o agora e que também pode ser encontrado e reconhecido sem nossa presença no amanhã. Podemos narrar nosso passado e seus detalhes turvos, traze-lo concreto em nós em marcas e mudanças, assim como guarda-lo num diário distante de qualquer outra função. Esse acúmulo de ontem roteiriza a trajetória compondo um panorama sistemático organizado de participação na história universal - mais ampla e formada pelas narrativas individuais e seus encontros e desencontros culturais, sociais, econômicos, religiosos, políticos. Já a revelação do passado, faz-se pela presentificação daquilo que será o passado histórico, quando a percepção se dá e se revela real e ultrapassada concomitantemente, conforme os exemplos sobre as estrelas ou o reconhecimento das informações. Por último resta-nos entender o que chamamos por futuro. Quando imaginamos o tempo, o futuro, o fazemos através de idealizações positivas ou negativas, através de projeções de nossos desejos. Tudo aquilo que imaginamos para o amanhã está intrinsecamente ligado às expectativas, racionais e subjetivas que formulam possibilidades de realizações, tendo por iniciativa a resolução ou compreensão de uma inquietação. É ela, a inquietação, a força motriz que leva nossa imaginação a desejar, antecipar os acontecimentos projetando possibilidades. Entretanto, a percepção dessas projeções ocorre na visualização de fatos concretos representados quase sempre por ações e acontecimentos reconhecíveis por nossa subjetividade, afinal elas são frutos e variações limitadas ao repertório de nossa subjetividade. Somos incapazes de imaginar o futuro como futuro. O futuro sempre se revela como acontecimento presente. Ou seja, limitamo-nos à criação idealizada a partir do suposto encontro vivencial com a mesma. O futuro, então, manifestação que é dessa busca pelo amanhã, deve, enfim, ser entendido como sendo o desejo de passado, o desejar representado durante a revelação do passado idealizado por nossas inquietações.

Determinante sobre a maneira como construímos nossa existência, o passado das fotografias de ontem, da lembrança escolhida e central, tem sido substituído pela urgência do ideal. Não mais do ideal narrativo, mas o estético, aquele que socialmente compreende-se por ideal dentro dos modismos e idiossincrasias de cada época. Se outrora o gesto fotográfico era a pertinência de uma escolha, hoje imediatamente voltamo-nos às telas das máquinas fotográficas digitais para reconhecer a expectativa da experiência fotografada. Se a imagem não corresponde ao que se pretende recordar, apaga-se, substituindo-a por outra segundos depois. Um sorriso torto, um enquadramento desequilibrado, a cor mal traduzida, um desequilíbrio da ordem pressuposta qualquer. A maquinização do desejo substitui a verdade do congelamento do instante por sua construção falseada, tanto quanto eram as primeiras fotografias e a necessidade técnica em se manter estático por tempos longos os suficientes para retirar do gesto qualquer espontaneidade. Contudo, não se trata mais de uma necessidade técnica e sim da idealização que busca dialogar com um anseio público sobre o produto. É o ‘como quero me lembrar disso’ ou daquilo ou você ou de si mesmo. Basta ver que a grande questão agora não é mais a foto em si, mas o reconhecer-se nela, o natural “deixa eu ver...” que faz com que o fotógrafo restaure imediatamente aquilo que deveria recuperar uma memória e que agora mais se mostra sua construção.

Se por um lado perdemos a relação com a história e nossa participação na formação de sua narrativa, por outro encontramos subterfúgios emblemáticos alternativos que nos ligam à importância social dessa participatividade: a souvenirização. A miniatura de uma Torre Eifell tem a propriedade de nos remeter à existência concreta da construção instalada em Paris, e se comprada na cidade original (ainda que quase sempre esses artefatos sejam de fabricação chinesa) o mimo ganha valores emotivos mais pertinentes ao seu consumo. A torre, esquecida na prateleira da sala, está lá para nos relembrar o impacto real, traduz aos terceiros o encontro em si e dá existência e contexto às memórias. O souvenir, a lembrancinha que amigos e parentes exigem, distribui aos ausentes partes dessa vivência, torna-os cúmplices daquilo que não viveram. Essa tentativa de trazer consigo um pouco do que sentiu e viveu, traduzindo-o numa pequena mostra real do passado, seja uma foto ou uma miniatura qualquer, ampliou-se com a perspectiva do afastamento do sujeito e sua responsabilidade com a história. Antes o viajante visitava os monumentos por querer mais do que encontrar o próprio, mas tudo aquilo que o tornara indispensável na narrativa da humanidade. Hoje, a estetização da importância histórica faz com que o encontro ocorra na superficialidade do encontro estético, ainda que qualquer “encontro” em si seja já a amplificação perceptiva do sujeito. A questão complica-se no momento em que a história passa a ser consumida como sinônimo de participação. Então compro um pedaço do muro em Berlim, mas sem qualquer saber de sua significância histórica (com ele e sem ele). Aquele pedacinho pintado de muro, que bem pode ser de qualquer muro e época, torna o portador cúmplice daquele momento. Contudo, igualmente falso ao sorriso forçado em fotografia refeita para ser relembrada como felicidade em algo que não teve. A souvenirização da história traduz o indivíduo como reconhecedor de certa importância. Porém, a tal importância não está mais na participação da construção em si, mas no reconhecer aquilo que o passado revelou como sendo importante para sua existência.

A souvenirização contextual dos acontecimentos está na naturalidade em que cada igreja, monumento, acontecimento político e cultural, espaço de história, localização de passado consagrado à relevância de permanência, cada canto possui seu free shopping, sua bancada de produtos, suas prateleiras de miniaturas e reproduções estetizadas em brindes de toda sorte. Não há um local histórico que não tenha se tornado turístico, e não há um local turístico que não tenha desenvolvido sistemas de capitalização de sua história.

Voltamos às questões trazidas anteriormente: “o que seria a existência, então, a materialidade presencial ou a manifestação reconhecida? Do que importa algo que não se manifesta? E do que serve um reconhecimento de algo inexistente?”. A souvenirização da história expurga a problemática pelo que há de mais cruel: a existência do sujeito como fabricação de um Sujeito inferior à própria necessidade de existência. Explico. O homem manifesta sua participação na aceitação daquilo que se traduziu por necessário e não mais pela necessidade em si, e nessa participação falseada, encontra a si mesmo como fundamental naquilo onde ele mesmo não se vê. E por que reconhecer-se em algo assim? Para que sua própria existência seja maior, vá além da superficialidade do comum. Em cada pedacinho de muro, lasca de cruz, miniatura e coisas do tipo, o que o homem busca é o reconhecimento de si mesmo, a simetria com o outro, o reencontro com sua espécie. Nossa falsa participação nos afasta da história real e nos acresce à oficial, portanto nos faz existir como se pretende que seja uma correta existência, e enquanto não retornarmos ao hoje, ao agora, ao verdadeiro encontro com a revelação do passado em seu tempo de construção, a dominação do passado histórico como fundamento de formação de nossa subjetividade e responsabilidade há de nos tornar meros coadjuvantes de nossas próprias realidades. E sem o encontro verdadeiro, não há como adquirir instrumentos para formar o vocabulário necessário ao desejo de passado, o que nos limita a capacidade de desejar somente aquilo que nos fora dito ser possível. Em resumo, distantes, portanto, da possibilidade de sermos criadores da história a vir. Por hora, restarão as prateleiras repletas de mimosas lembranças daquilo que nunca viveremos mais...