Antro Particular

27 setembro 2010

carta aberta aos urubus

Caros Urubus, perdoem por tratá-los de maneira tão incômoda e genérica, mas vocês têm nomes? Ouço daqui um, de lá outro, mas os nomes mesmos permanecem escondidos ou esquecidos de serem ditos. Aliás, vocês falam? Porque os vi tão quietos e acomodados em seus postes que os achei deprimidos. Não, isso não, por mais que quisessem me convencer de uma possível depressão, vocês não me pareciam verdadeiramente assim, foi mais força de expressão mesmo, melhor não confundirmos as coisas. Naquela noite, aquela em que tentaram resgatá-los de seus cativeiros, pareciam mais adaptados ao universo da arte do que eu. Por acaso vocês estudaram arte por aí? Não me lembro de circular por outros ambientes em que estivessem. Galerias, museus, exposições, nada mesmo. Mas é curioso como a sensação de lembrança surgia tão nitidamente apropriada. Não, talvez vocês sejam outros de uma classe de urubus que já devo ter cruzado por aí, em ambientes menos interessantes. Zoológico talvez? Não sei, acostumados demais ao caos, acho mais possíveis os montes de lixos ou pedaços de carniças em beiras de estradas. Que bom que vocês são três, e por serem quem são, tão dedicados a fazer dar certo, isso é muito até, assim vocês fazem companhia uns aos outros. A participação em uma instalação deve ser meio enfadonha e monótona. Entre uma música e outra, um olhar mais curioso e um inconformado, bem que vocês poderiam nos presentear com vôos e rasantes, raspar as asas nas telas enquanto nos hipnotizam com malabarismos e exibicionismos. Seria bonito de se ver de fora, sobretudo se isso viesse somado ao conceito da obra. Já pensaram? Serem a própria obra? Pra mim vocês já são. Uma metáfora triste de um país nebuloso, à beira de um colapso, segregado de seu futuro. É o que senti quando olharam para mim. Alias, àquele que me encarou de bico aberto, disposto a me confrontar, só um aviso: eu te respeito, sabia? Respeito por ser você parte de um discurso sensível, crítico, honesto e provocador. Por me sensibilizar, por me trazer reflexões, por espelhar minha vida em igual condição. Só que um dia você vai pra casa. E eu, faço o que, já que já estou em casa?

Pois é, urubus, aqui não é fácil. Proibi-se de mostrar, de ver, de dizer, de voar. Perto de vocês alguém teve outra sorte. Foi embora. Foi arrancado por uma tarja preta e escondido de apresentar suas cores. Coitado, já deve estar na Argentina de volta. Imagina a frustração de voltar sem nem mesmo ter chegado? Ninguém fez nada pra impedir isso, muito menos os que se arriscaram para libertar vocês. Esses, provavelmente, nem sabem do que estou lhes contando. Aquele retrato, sim era uma foto dupla de duas figuras que sobrevoam nossos destinos, foi-se sozinho, sem multidão. Que mundo estranho esse, não? Vocês aí, instalados, magnânimos, famosos. Enquanto os personagens daqueles retratos são quem parecem sedentos por carniça. É, amigos - posso chamá-los assim, não posso? É que o convívio com vocês me dá a sensação de certa intimidade –, do lado de cá da grade parece que as grades são mais perigosas. Não as vemos impedir os vôos mas, de alguma maneira, esmagam nossa capacidade em brilhar livres, nosso ir e vir, de imaginarmos.

Aqueles que se preocupam com vocês não são muito diferentes dos que se preocupam comigo. Imagina que se vocês saírem daí esses protetores e amantes da liberdade irão levá-los para uma jaula dez vezes menor e com uma dezena de outros para com quem a dividirem. Uma kitchenette na Água Funda, praticamente, ao invés da suíte Niemeyer do Ibirapuera e seu glamour histórico. Eu sei que isso é loucura, mas eles acham que vocês estarão melhor assim. Eu não posso fazer nada. Caramba, vocês acompanharam a confusão de perto, quem pode com eles? Eles não escutam, não pensam, só agem e agem e agem. Sim, eles acham que liberdade é isso. Gritam, destroem, picham. Hoje em dia a liberdade é palavra de ordem, seja lá o que se entenda por liberdade. Liberdade aos urubus! Liberdade aos ativistas. Liberdade aos pichadores. E cadê a porra da liberdade do retrato? Dane-se o retrato, é argentino. E por aqui ninguém gosta mesmo de argentino. Será que os salvadores sabem de onde vocês vieram? Melhor nem dizer. Há muito preconceito por aqui sobre essas regiões também.

Sabe o que foi mais estranho nisso tudo? Aquela multidão se divertindo e gritando pra soltarem o pichador e vocês como se fossem a mesma coisa. É engraçado, porque vocês não cometeram nenhum tipo de crime e acabam comparados ao mais patético e ingênuo dos idealistas. Eu acredito que sejam, porque idealista é todo aquele que possui um ideal, e eles tinham um, não tinham? Acho que sim, antes deles aparecerem, já devem ter soltados todos os animais dos zoológicos, os dos aquários, os cavalos e burricos explorados em mão de obra, as vaquinhas leiteiras, cães policiais. Mas esses ainda têm lá seus privilégios. Já pensou nos que vão direto para os frigoríficos? Pior, e os que são servidos aos deuses em terreiros de toda ordem? Que puta sorte vocês serem urubus, heim? Estão famosos e sem qualquer risco de virarem ensopado, capas de jornais, programas de televisão. Vocês estão com tudo. São os artistas da vez. Mas e o retrato, heim? Será que vocês, com toda essa influência na mídia, não conseguem trazê-lo de volta? É de tirar o sono saber que isso ainda acontece. E fiquem espertos, porque tem gente querendo tirar outros. Esse é o lado de cá da jaula. Tem urubu pra todo lado por aqui também. Tá bom, me desculpem, eu não quis ofender vocês.

Quando eu disse que tem por todos os lados é mais do que isso. Tem os que torcem pra tudo dar errado, tem os que fazem tudo dar errado. Nem isso vocês perceberam? Ora, espera um pouco, vocês precisam ser mais responsáveis, não esqueçam que agora vocês são ícones da nossa cultura, caramba. Vocês reinventaram o bbb, poxa! Ok, só toca a mesma coisa na instalação, não tem outras notícias, nem globonews ou cbn... Enfim, eu explico. Nós tivemos uma década de bienais cada vez piores, muitas por incompetência, poucas por desestrutura. Claro que isso é possível, na última estava praticamente vazia. Não vazia vazia. Tinha umas coisas aqui, outras lá, tinha até aula de dança pra idosos. Vocês podem parar de rir? Eu queria continuar... Queridos, isso não é engraçado, é desastroso, chega! Nessa década catastrófica que passou, os artistas simplesmente acharam melhor criar outra exposição paralela do que enfrentar o problema de frente. Mas até que foi bom, abriu um campo novo de debate, de experimentações, e esse universo paralelo agora tem vida própria, tem sua voz e tal. Apesar de ser curioso o fato de seguir o mesmo modelo que criticam. Nessa edição, depois de uma reestruturação gerencial, administrativa e o cacete, a bienal retomou seu caminho. Tá bacana, esforçada, tem bons trabalhos, tem discurso. Acho que é questão de manter e esperar nascerem os frutos. Até o ano que vem terá exposições. Coisas que nunca vieram, uma promessa bem audaciosa. Pois é, eu também acho que isso demonstra segurança dos investidores, gestão comprometida e capacidade de fruição de idéias, mas tem os urub..., tem uns que ficaram de fora e que se acostumaram, depois de uma década, a reclamar e xingar compulsivamente, e é isso que estão fazendo. Bom, vocês são racionais e conseguem enxergar logo que é preciso dar confiança ao renascimento da coisa pra que ela se firme e exploda em potência, mas nossos artistas não são assim, eles preferem destruir tudo outra vez, parar com tudo, jogar merda pra cima e... E o que, né? Qual a proposta deles, afinal?

Entendem como vocês são uma metáfora bacana? São os artistas mais importantes desse ano e a única coisa que fazem é ficar olhando um pro outro com cara de que querem algo diferente, mesmo que não saibam o que é esse algo, enquanto espalham merda por todo canto. Mas essa é a grande diferença de tudo! Sim, vocês tem um dono que cuida de vocês, e nós? Mas nem em sonho. Só vocês pra acreditarem que os nossos donos se preocupam conosco. Nem pensar. Eles estão pouco se fodendo. No Brasil a ignorância foi exaltada durante muito tempo, agora colhemos os frutos apodrecidos disso. Não, urubus, não é bacana termos frutas podres em excesso. Eu sei que elas vão aumentar e muito a partir desse ano, acho que o povo se transformou num feirante drogado pela incredulidade de mudança. Ou é pura ignorância mesmo, o que é bem mais possível, sim. Eu tenho sistematicamente freqüentado os sites e blogs dos principais candidatos a dono, em tudo que é tamanho de dono, mas os materiais disponíveis são escritos de maneira tão patética e previsível, com frase corretas como ‘desenvolvimento’, ‘sustentatibilidade’, ‘continuísmo’, além, é claro, de tudo ser focado pelo viés do ambientalismo mais aleatório e gratuito que já vi. E é exatamente disso que a coisa toda trata, os teus salvadores são da mesma safra. Vocês dão ibope, então são salvos. As lontras, não, então elas que fiquem no zoo mesmo. Eu falei lontra porque uma muito divertida, que enlouquece quando chega alguém perto, faz gracinha, nada como doida, se joga na água e, enquanto batemos palma e sorrimos, ela deve estar pensando – seu imbecil, me tira daqui, porra, não ta vendo que tudo o que faço é pra chamar tua atenção?, mas ela ta lá, e faz muito tempo já. Não tenho certeza se os teus salvadores a conhecem.

Fala-se o correto, sim, nesses discursos todos, até por serem muitos parecidos, ainda que a incoerência e a impossibilidade de realizar o que se propõe sejam óbvias. O que importa é dizer e não dizer de fato, afinal, uma linha aleatória pode ser facilmente manipulada com o correr do tempo. Como vocês já são. Ninguém olha pra vocês mais como artistas, vocês se tornam bicho outra vez, tiraram de vocês o direito romântico de se iludirem e embriagarem em sonho. Mas, como tudo aqui, é assim, não tenham a coisa como pessoal, a cultura no nosso país é carniça velha. Para os nossos futuros donos, por exemplo, o futuro da cultura está irremediavelmente condicionado à educação. Se ao menos eles passassem pela bienal para entender a diferença entre educar com cultura e usar a cultura como educação. Mas não, exemplos por aqui não servem pra nada aos que já se entendem resolvidos. Parece difícil entender, mas é simples, é como se vocês fossem melhores se estivessem aí na bienal ensinando novos urubuzinhos a voarem. Já foi assim, sabia? Levamos décadas para desconstruir a obrigatoriedade desse paralelismo. Foi o nosso pior momento, quando ambas as disciplinas pertenciam a um mesmo Ministério. O problema é que entender a cultura como manifestação criativa, cujo existir serve ao processo de educar o olhar, é deturpar o valor mais fundamental de qualquer manifestação cultural: liberdade! Não é mesma liberdade de vocês estarem livres pelos céus afora, vocês são quem são e possuem esse direito tanto quanto os pardais e aviões, mas a liberdade maior em serem urubus-artistas numa bienal. É como se vocês precisassem ser outra coisa para existirem aí, entendem? Se vocês estivessem empalhados como o porco ninguém falaria, nem sequer notaria que para ser empalhado é preciso estar morto e, bom, eu nunca soube de um porco suicida,portanto... Ok, se acalmem, por favor, vamos voltar a falar de cultura, então.

A liberdade de qual falo é a do retrato estar na parede para qual existia. Proibir é censurar. O retrato representava dois dos nossos possíveis futuros donos, e ser isso um problema ofende a arte e a democracia, é constrangedor, pois nem ao menos busca disfarçar o controle, faz do espetáculo de sua força a imagem pública de um poder maior e absoluto. Quando os pseudo-protetores da nossa democracia exigem que alguns desenhos sejam retirados, a ignorância se revela perigosa demais. E esse é nosso futuro. Um dono, seja lá quem for, que limita a cultura ao serviço da educação, enquanto estende seus tentáculos partidários e ideológicos para sufocar qualquer manifestação contrária aos seus interesses, e representantes que optam substituir a liberdade pela estupidez do politicamente correto, em nome dos direitos, ainda que esse correto esteja mais próximo a um escambo de interesses entre os poderes do que necessariamente ao serviço da sociedade. A cultura e a arte servem como provocações críticas, sensíveis ao nosso imaginário, nossa subjetividade, à maneira como nos reconhecemos, como nos posicionamos, não são suas funções explicar nada, defender ou acusar algo, necessariamente. Explica-se, defende-se, acusa-se se assim o artista desejar, se assim for sua ideologia. Deixem o retrato no lugar, é o que deveria ter pichado o pichador! Mas, pelo contrário, nossa sociedade, cada vez mais, abstém-se do convívio com a arte, e os poucos artistas que restam se afundam em solidão e desaparecimento. É, urubus, isso tudo é um beco sem saída. Seja quem for que vier a ser nosso dono, estamos perdidos, porque o povo já se perdeu de vez. Estamos sozinhos, eu, alguns duvidosos da história oficial e vocês, artistas de verdade. Vocês, ao menos, ainda podem voar e sentir minimamente a liberdade do vento em suas penas sem qualquer propósito que não o de querer voar. E nós, cujo existir tornar-se-á serviço de qualquer coisa? E eu?

22 setembro 2010

O inverno da luz vermelha

Aspecto próprio do mundo civilizado, a solidão se desenvolve desde sempre como fruto inerente ao homem urbano. O perder-se dentre as artérias das cidades, que outrora adquiria valores romantizados pela figura do flâuner, a boemia do início do século passado desprovida de companhias outras que não a poesia e a arte, o enclausuramento ideológico pós-guerras... Esses e tantos outros aspectos trouxeram à literatura e ao homem a compreensão de ser a solidão algo maior do que o existir só, mas sua utilização como discurso e problematização sobre a realidade a partir de uma observação crítica.

Hoje, a solidão atua em níveis mais descontrolados pelo sujeito, que ora se vê sozinho ora se prefere assim. A troca da relação direta pela virtualização determina ainda mais perigos, sobretudo o da ilusão de ser possível reverter conscientemente o isolamento, afinal, basta ligar o computador para se encontrar ou ser encontrado e deixar, assim, de se estar só. Infelizmente, não. A ilusão funciona às avessas. A solidão funda a condição do homem contemporâneo e determina à sua subjetividade um existir limitado a ela.

A ilusão de que optamos pela solidão traduz-se na incapacidade de revertê-la. Usamos da artificialidade do autoconvencimento para acomodar-se e fingir desconhecer a impossibilidade de reverter nosso isolamento. E construímos nossas personas limitadas a uma camada de apresentação, como se fosse verdade ser apenas o que se revela ao outro e do outro o que enxergamos tão claramente. Esse achatamento sobre nossa identidade reflete mais do que sua banalização, traduz, sobretudo, a distância em dialogarmos com as multiplicidades.

Sobre a construção de identidades isoladas a superficialidade de uma camada representativa, reduzindo o sujeito ao imediatismo de sua leitura, que Adam Rapp elabora suas personagens em “O Inverno da Luz Vermelha”. Isolados neles mesmos, os personagens convivem à solidão de suas próprias vidas incapazes de chegar ao outro. A distância, formalizada sob a subjetividade de uma geração acostumada a ser apenas assim, revela o sofrimento daqueles que não encontram outras maneiras de existir. A prostituta (Marjorie Estiano) cuja identidade trai a própria ao se vender personagem da mulher qual desejaria ser, o músico (André Frateschi) que impõe a destruição sobre qualquer envolvimento que lhe obrigue a se revelar diferente ao estereótipo que construiu de si, o escritor (Rafael Primot) em fuga de si mesmo, que encontra apenas em sua história os artifícios para sua escrita.

“O Inverno da Luz Vermelha” cruelmente explode a condição solitária do homem naquilo que mais reconhecemos como contrário a ela: o amar. O encontro entre as pessoas leva-as ao ápice da condição de solitárias. Não é possível se aterem a qualquer sentido de encontro, pois não cabe mais ao homem o partilhamento sequer de seus sonhos e desejos. A peça invade nossos segredos e aponta o dedo sobre os esconderijos onde guardamos nossos verdadeiros eus.

A coesão dos atores faz do que poderia ser um argumento juvenil e pessimista um jogo de representações, de capacidades e entregar valorosas. São jovens talentosos em busca de algo que reclame ao mundo suas existências, e a escolha de um texto como de Rapp dialoga com coragem e generosidade as incertezas dos discursos. Um trio que se mostra disposto a romper a solidão fácil do teatro burguês e sua aceitação prévia, para, com lágrimas aos olhos, ao fim, se deparar ao público. Marjorie, Rafael e André, trouxeram de si os argumentos que nos prendem por quase duas horas nas poltronas, reclamando por um pouco mais.

Trabalho de uma eficiente direção que igualmente incomoda suas idiossincrasias e deixa serem os atores a estrela do espetáculo. Monique Gardenberg, como já revelou em seus trabalhos anteriores, sabe construir a cena e nela impor sua marca. Desta vez, a diretora doa sua criação para que algo mais possa surgir, permitindo ao teatro, como raramente é feito, o argumento para nos aproximar o humano. Se Rapp enxerga na solidão do homem sua condição existencial, Monique e o elenco fizeram da manifestação teatral a contramão desse argumento. É possível sim reencontrar-se e estar junto ao outro, ainda que seja por duas horas, separados em poltronas vermelhas. Vermelhas, como curiosamente, já nos indicava o título do espetáculo, enquanto o inverno se revela no interior da solidão de cada espectador.

04 setembro 2010

A favor da bienal de sp, seja como for

Há muito preconceito sobre o fracasso. Como se perder, ser vencido, não alcançar, desistir, determinassem mais do que uma ocorrência, fosse determinante à própria constituição do sujeito, na amplitude e convergência daquilo que forma seu caráter e, em última instância, sua humanidade. A expiação de haver entre os homens graus de relevância não chega a ser novidade. Desde a necessidade de sobrepor força à sobrevivência até o poder administrado por diferenciais intelectuais e culturais, o homem se vê aprisionado à esfera daquilo que é capaz de demonstrar. Com o tempo, a demonstração deixou de ser suficiente e a representação tornou-se o valor de singularização. Representar algo, ser representante, portanto, determinou ao homem a perspectiva de sua manifestação política sobre sua comunidade, quando suas convicções e as certezas de suas escolhas, frente ao bem-comum, revelaram-no especial e necessário. Há, já aí, uma distância fundamental na reelaboração do homem que deixa de ser alguém por si para ser alguém que seja o todo.

Se, antes, o homem que se impunha por si, de alguma maneira, mantinha tangenciado às suas necessidades e conquistas aqueles quais sobrepusera, como princípio de agregação e responsabilidade para com os outros, o alguém que representa o todo precisa da existência do sistema tangencial para se fazer representante, afinal, só é possível representar algo se admitida a existência deste como existência própria e anterior ao próprio representante. A dimensão antropológica que constituía a presença do sujeito em comunidade passa à dimensão política, onde o sujeito está, na realidade, anterior ao próprio homem, substantivado, enquanto o homem se mantém conseqüência à comunidade.

Igualmente, o fracasso - manifestação do desejo não concretizado - sofre igual transformação. Antes, o fracasso perante o outro, condicionava o sujeito a uma recolocação dentro da estrutura comum, cabendo-lhe reentender sua função e participação no universo pertencente ao comum. Posteriormente, o fracasso, ao ser aproximado à construção política do homem, implica, necessariamente, ao seu não pertencimento e participação. O novo fracasso, melhor dizendo, o fracasso moderno, mais do que identificar o perdedor, anula-o como sujeito, construindo-o sob os paradigmas da inutilidade, limitado ao servir o vitorioso de modo a manter, pragmaticamente, sua vitória incontestável. Ou seja, o fracasso moderno aprisiona e escraviza ideologicamente o sujeito que o sofrera sem que haja grandes possibilidades de reverter o fracasso ou superá-lo em uma próxima investida.

Se fracassar antes era determinar-se limitado, no mundo moderno aprisiona e explora, por isso a incessante busca pela vitória, pelo ganho, pelo reconhecimento. Nasce aí toda uma cadeira de indústrias periféricas para oferecer ao homem moderno possibilidades de não fracassar: da educação objetivada em "conteúdo igual a resultado", do emprego com perspectivas evolutivas, das afetividades transitórias e substitutivas. A sociedade, e não mais a comunidade mas a completude de comunidades que a compõe, introduz o fracasso como eminência destrutiva do ser, e não mais o fracasso como naturalidade de possibilidade.

Da modernidade aos nossos dias, o fracasso sofrera outra transformação. A dita pós-modernidade parte para outra observação do sujeito, onde não mais importa o valor de demonstrar e/ou representar, mas, sobretudo, o de produzir. Da capacidade em produzir economicamente à de gerar relações afetivas, sociais, culturais e políticas, o homem se encontra sob o paradigma do fracasso inevitável, enquanto insiste, pelo preceito anterior, que o fazer é suficiente para sobrepujar o fracasso eminente. O fracasso pós-moderno amplifica o sentimento de inutilidade, o valor anulador sobre a compreensão existencial do sujeito. Agora, improdutível, passa a representar valores negativos para o todo, portanto, ao fracassado, resta o isolamento. Todavia, a disparidade entre a compreensão do fracasso e do sucesso, hoje, deforma a objetividade do que essencializam os dois pólos, e, ambos os extremos, passam a co-existir como potências reais, e não como conseqüências do existir. E onde residem os fracassados, grande maioria entre nós, agora improdutíveis e inúteis? Na enorme massa de consumidores, cujo existir serve à manutenção do sistema que fortalece o favoritismo dos vitoriosos.

Reagir a isso determinaria ao sujeito expor seu fracasso como forma de aceitar sua situação. Manter-se, entretanto, submetido, silencioso e passivo assemelha o sujeito ao outro, surgindo daí uma cumplicidade velada, onde a nova casta nega seu fracasso, preferindo se verem comuns. Fracassado, portanto, verdadeiramente, é aquele capaz de se dizer falível, incapaz, infeliz. Com o paradoxo de ser possível somente ao assumidamente fracassado modificar sua situação, enquanto ao passivo a permanência em seu estado de letargia é fundamental à manutenção de sua felicidade. Esse existir passivo termina por mediocrizar o homem, torna-o mediano, localiza-o dentre o fracassado e o vitorioso, enquanto o redesenha nebuloso e correto. E é esse o ponto maior de irresponsabilidade que se pode atingir: ser meramente correto. Sem qualquer outra função na construção da história, o homem correto abstém de sua presença singular no presente para assisti-lo definido pelos dois extremos: o vitorioso que conduz o sistema aos padrões determinados e organiza a ordem comum; o fracassado, cujo empenho frustrado movimenta a ordem aleatoriamente, introduzindo inquietações às certezas que, aos poucos, levam os vitoriosos a outras possibilidades de atuação. Ao fim, cabe ao fracassado determinar de fato o que justificarão os vitoriosos de amanhã. É a tentativa função de equilíbrio do existir em sua capacidade elástica sob a história, enquanto o resultante, o fracasso propriamente, redimensiona valores e objetivos a partir de respostas concretas espelhadas.

A sociedade, tal qual, é, insiste em expurgar o fracasso de seu imaginário. E, na ambiência cultural, essa observação mantém-se fiel à regra. Qual artista gosta de fracassar? Mas não deveria ser da arte a pertinência do experimento? E todo e qualquer experimento, ao se valer de discursos e estratégias não cifradas, não se pilariza, principalmente, na perspectiva do erro? O erro, o errar, todavia, é, antes de uma resposta social ao artista, promessa e descoberta em processo. Talvez seja por isso, então, que a arte brasileira esteja em um momento tão desinteressante, correta, mediana. A ausência de experimentos/inquietações é proporcional à necessidade de reconhecimento/acertos. Exemplos diretos atuais são as escolhas das premiações e editais, cada vez mais em busca de "acertos", subestimando o acerto por avaliações quantitativas e mercantis.

Enquanto o homem servia a demonstrar, a arte existia em sua necessidade e finalidade. Depois, ao ser representativo, a arte discursara seus valores em modismos e vontades definidas. Agora, o homem producente, faz da arte artefato de resultado produzido para nenhum fim. Época perfeita para a arte, então, se livrar da servidão, e para que possa, enfim, encontrar sua existência como atribuição independente na sociedade. Enquanto isso não ocorre, enquanto o artista não se vale de sua liberdade em errar, experimentar e redesenhar o amanhã em possibilidades impensadas pelos artifícios próprios da ordem reinante, resta esperar e manter viva a necessidade que faz com que as exceções fracassem diariamente. Paciência. Há muito vitorioso por aí que pouco ou quase nada significa. Há também fracassos cuja pertinência de seus fracassos um dia poderão ser a base do comum. A arte é assim, os artistas, sempre incógnitas. E em breve chegarão às centenas para a Bienal Internacional de Artes. Seja lá o que tiver de ser...