Antro Particular

31 maio 2006

VERÔNICA CORDEIRO: a arte como possibilidade de ser o outro

21 de maio. A Prefeitura de São Paulo, em um ato de extrema coragem, mantém as festividades da Virada Cultural 2006. Não se rendeu a Cultura aos ataques e assassinatos. E fez-se bem em agir assim. A imprensa e órgãos oficiais falam em 1,5 milhão de pessoas circulando pelos mais diversos pontos da cidade, em todas as direções, ocupados com atrações de teatro, música, dança, literatura, encontros. A população da megalópole responde aos criminosos no que haveria simbolicamente de mais agressivo: o prazer, a diversão, a alegria.

Verônica Cordeiro, artista plástica, envia-me dias antes um convite: sairmos às ruas. Confesso que não estava à vontade para caminhar durante a madrugada após o que vi pela televisão... Mas o convite propunha irmos além. Não apenas circular pelas avenidas ou participar dos shows. Vestidos por parangolés criados pela artista na reunião de materiais como embalagens, plásticos, tecidos e manchetes dos jornais dos últimos acontecimentos. Cerca de vinte pessoas. Passeata inesperada ao sabor incomum de uma gaita, um saxofone, um clarinete e um violão acrescentado por um anônimo.

Bastaria pelo inusitado, no ofício da artista de compor ali, na junção estranha de cortejo urbano e protesto conceitual, elementos suficientes para argumentar o bloco. Crítica à arte enclausurada das galerias e museus. Crítica aos artistas submersos a um sistema mercadológico. Crítica à violência. Crítica ao abandono da cidade. Trace qualquer possibilidade de leitura, ainda assim havia algo maior em tudo aquilo.

Contudo, faltava definir o elemento principal: o público; sem o qual o manifesto não se concretizaria. E então Verônica vai além... Ao contrário do óbvio e da procura pelo reconhecimento, o percurso não era pelos locais das multidões, dos shows, teatros. Entre 19h e 23h, caminhamos por avenidas sem atrações, por ruas e vielas conhecidas por serem pontos de tráfico de drogas, de contrabando, prostituição, violência. Sem policiamento, segurança ou preparação.

Avenida Paulista, Trianon, 9 de Julho, Praça 14 Bis, Paim, Viaduto Julio Mesquita Filho, Rua Augusta, Praça Roosevelt, Nestor Pestana, Ipiranga, Praça da República, Rua Aurora, São João, Rio Branco, Santa Ifigênia, Jardim da Luz, Pinacoteca. E o festejo feito em silêncio e euforia caminhando por dentre o público surpreso do museu.

Não sei quantos quilômetros deram, ou quantas música foram tocadas, e paradas para ir ao banheiro em restaurantes e postos de gasolinas. Não sei quantas pessoas pararam para nos olhar, ou que acenaram de suas janelas, ou mesmo as que se aproximaram para entender o que pretendíamos. Nesses momentos, crianças e adultos tinham a mesma expressão curiosa. Casais e solitários. E mendigos. E bêbados. E carroceiros, catadores-de-papel, de lixo. Do lixo que tornávamos pele. A nossa cidade!

Verônica parava para cada uma dessas pessoas. Conversava, tocava-as, explicava arte enquanto descobríamos a mais profunda realidade. Aos moradores de rua, parangolés eram carinhosamente oferecidos. Para alguns, a loucura satisfeita ao se ver vestido em delírio de tecido e jornal. Para outros, a lágrima descontrolada do sentir afago, proteção e ter os olhos encarados sem medo ou piedade. Estávamos em festa. Juntos, iguais. Sabíamos disso. Sabiam eles também. Ao fim, restavam-nos pouco mais do que os desenhos de corpos sujos, maltratados, maltrapilhos, vestidos como nós (e nós como eles) sumindo nas ruas silenciosas, escuras, abandonadas.

Se Verônica conseguiu transmitir a essas pessoas a importância da arte, nunca saberemos. Mas duas são minhas certezas: a de que eu, enfim, compreendi; e a de que, em algum lugar dessa cidade, deve haver um homem dormindo no chão, vestido com jornais, sonhando, com um sorriso livre, repleto de esperança e, acima de tudo, em paz. Ainda que tudo não passe de um pouco de sonho...

Obrigado Verônica por você ser como é.

17 maio 2006

SÃO PAULO: propriedade particular


Duraram toda a tarde as sirenes e helicópteros, aqui, na Avenida Paulista. Mas não olhei pela janela, faltou-me ar... Pela televisão e internet os dados confundiam os números de atentados, assassinatos, prisões, rebeliões. Ainda não tenho certeza, mas a morte de um bombeiro me basta para definir este momento. Medo talvez seja uma palavra pequena para todos que como eu tinham alguém distante, pelas ruas, entre as balas e chamas. Os telefones não ajudavam, falhavam. E a solidão se consolidava em uma espécie de abandono absoluto ao assistir o Governador afirmar que tudo estava muito bem. Para quem?

Decisões que não vieram, palpites, previsões, e no meio da tarde, aleatório entre os canais, o depoimento de um coronel afirmando se tratar de uma organização criminosa conseqüente da aproximação dos presos políticos e suas técnicas de guerrilha urbana junto aos criminosos comuns, durante o regime passado. O dia de hoje lhe provava o quanto esses tais presos políticos eram perigosos.

Ou um apresentador infame que diz ser culpa de um governo esquerdista incapaz de aceitar que as decisões de uma direita histórica eram de fato as corretas!

Ou a esposa de um policial que exigia que todos os criminosos fossem trazidos a público e servissem de exemplo de punição. Feito à Idade Média. Feito à Inquisição, já que afirmava ser esta a justiça de Deus. Qual? O dela, só se for. Apesar de ateu, não duvidando da possibilidade de eu ter amanhã um deus, certamente esse não será. Mas Deus(s) estava atento, pois na Catedral da Sé um ato ecumênico traduzia ao divino a dor dos policiais assassinados, e também a força política da igreja em comandar e situar as orações. Não se perde tempo nesse país.

Houve um tempo em que marginal, bandido, seqüestrador, assassino, terrorista eram qualificações. Não servem mais. Há que se criar um outro nome capaz de agregar em um só substantivo todas as características que os criminosos modernos demonstram. Suas especializações se confundem e enquadram os marginais lado a lado aos mais terríveis. Ladrões de supermercado se tornam poderosas potências criminais. Assaltantes de semáforos confundem-se com assassinos impiedosos.

Enquanto isso, o PCC serve como tradução ao horror. Mas que fique claro: o PCC não é mais do que uma tradução da inexistência de um governo, da incapacidade jurídica de se ater aos fatos. Ainda na segunda, no Roda-Viva, Renato Lombardi dizia ter recebido, como tantos outros, há muitos anos atrás, um organograma desenvolvido por Marcola, que demonstrava como o poder criminal iria se organizar pelos aparelhos prisionais de todo o país, sediando-se no Estado de São Paulo. Mas a polícia e políticos não acreditaram. Esta semana era de conhecimento de todos a organização das rebeliões e os ataques. Mas também fecharam os olhos. A ingenuidade e incapacidade dos governantes se revelaram em imprudência e descontrole. Segundo o Governador, “um drama”!

Enquanto as CPIs expõem em seus resultados o desinteresse dos governantes pela punição e pelo ético, resta ao povo mais esta certeza: a de que está acima de tudo sozinho. Preparemo-nos para um retorno a polícias ostensivas, políticas duras, segregações explícitas, censuras, confrontos públicos, determinações, imposições, punições aleatórias, atos institucionais... Não! Não é possível que tudo isso seja um plano absurdo orquestrado para justificar, e com apoio popular, qualquer atitude! Ainda somos tão ingênuos assim? Tão despreparados? Sou obrigado a conviver com ACM comandando uma ação relâmpago para gerar uma legislação punitiva aos criminosos?

Enquanto o Governo de São Paulo vê-se obrigado a sentar à mesa com Marcola, feito empresário respeitado, como única maneira de interromper as ações, ao paulistano não resta sequer a certeza de que tudo terminará em pizza. São Paulo, que verdadeiramente é a cidade da pizza, está vazia. De sons, carros, pessoas, certezas, futuros. E de serviços de entrega...

Cancelem as eleições... Marcola definitivamente chegou para assumir o que de fato já é seu.