Antro Particular

27 agosto 2009

A teatralização do poder

Era cedo ainda quando alguém trouxe a notícia para a sala de ensaio de que o espaço dos Parlapatões e a Gambiarra foram silenciados por fiscais e policiais. À medida que os fatos eram narrados, perguntava-me se algo havia ocorrido com os homens durante meu sono na madrugada anterior. Era difícil acreditar que a opressão retornara de maneira tão leviana e desnecessária. Liguei para Márcia e Tuca com a expectativa de ser tudo um enorme exagero, mas o que escutei foi algo bem mais perigoso.

Nos Parlapatões a ousadia do fiscal chegou ao ponto de dar voz de prisão a uma garota que se incomodou com sua presença e, entre suas amigas, deve ter dito algo não muito agradável sobre o sujeito. A situação foi contornada e ela pôde dormir em casa, se é que o conseguiu. Na Gambiarra, a festa foi cancelada, o público expulso sem se quer ter a possibilidade de acertar o consumo, gerando enorme prejuízo. O assunto já foi amplamente discutido por diversos veículos, ainda que muitos tenham preferido se limitar à versão errônea e simplista dada pela fiscalização.

Fiscalizar é um exercício administrativo público validado em lei, cujo atributo deveria se limitar a avaliar o comprimento de regras comuns ao convívio em espaços públicos. Não sou contra a fiscalização, ainda que seja contrário a muitas das leis. Mas, uma vez existentes, só nos resta cumpri-las. Nos dois casos citados, a fiscalização surge em meio ao evento - claro, só é possível recolher os dados em tempo presente - pela tríada "acessibilidade para deficientes", "psiu" e "anti-fumo" - e devidamente agregada à exigência de alvará de funcionamento e sustentada pela presença de policiais.

Ainda que seja um dever, portanto, nada dá o direito da ação realizar-se através da truculência. Sobretudo, como foram ambos os casos, sem qualquer instrumento que oficialize a visita.

A garota que recebeu voz de prisão nos Parlapatões por comentar com amigos a presença dos fiscais no bar, não deveria ter se calado. Ao contrário, deveria ter igualmente dado ao sujeito voz de prisão por abuso de poder. Sim, porque não cabe ao fiscal, ao ser desagradado, sair por aí prendendo quem se sentiu atingido. E, sim, porque diz a legislação brasileira que qualquer cidadão está apto a prender quem quer que seja, desde que o outro esteja cometendo crime. No caso da fiscalização exercida em São Paulo, os crimes são muitos, e vão de abuso de autoridade, ausência de mandato judicial, constrangimento público, intimidação ilegal, uso desnecessário da força, não identificação do fiscal, não regulamentação e registro da visita da fiscalização.

Há uma enorme distância entre fiscalizar rigidamente e ser gratuitamente ostensivo. O curioso é que em poucos outros casos espalhados pela cidade se ouviu a mesma história. Em dezenas de outras ações, não há reclamações de proprietários e frequentadores. No caso dos Parlapatões e da Gambiarra, a curiosidade assume a face de serem ambos os espaços frequentados por atores. O que nos leva a pensar numa analogia entre o processo e a teatralização do poder.

Ao contrário do que diagnosticara Guy Debord na década de 1960, quando escrevera A Sociedade do Espetáculo, assistimos, agora, a inversão dos mesmos princípios. Debord expôs a nova face do poder partindo do pressuposto de que lhe serve a massificação das sensações para gerar controle através de atitudes e estruturas que permeiem a sociedade de maneira sensacionalista, dando-lhe dimensão maior à realidade, usufruindo de certo agigantamento das sensações para redimensionar a soberania do poder, levando a manipulação a se fazer indireta e infiltrada no indivíduo pela reconstrução do imaginário coletivo.

A opressão explícita vivenciada em São Paulo parte para a mesma necessidade de se fazer reconhecível, mas através da exploração dramática de suas ações, teatralizando a ação que, esgotada em si mesma, desfavorece o próprio princípio da manipulação e, sem outra saída, oprime gratuitamente abusando das funções, personificando o poder a sujeitos e cargos.

Há muita diferença entre ambos. Uma sociedade do espetáculo é aquela submetida ao exagero onipresente, imperceptível, que nos acostuma aos enxertos espetaculares e sensacionalistas para causar impacto emocional, levando o indivíduo a se acostumar e viciar-se pelo superlativo. Numa sociedade teatralizada, a verdade é relativa e o que assistimos e vivemos são ficções apoiadas em preceitos dramáticos de submissão exponencial do outro através do autoritarismo e da desnecessidade de direitos fundamentais.

Os fiscais que fizeram dos Parlapatões e da Gambiarra seus palcos são incapazes de perceber que em suas atitudes, na teatralização de suas presenças, servem a um poder totalitarista de dominação do imaginário, apregoando ao outro um sentido maior de submissão e conduzindo a sociedade ao distanciamento do que deveria ser tido por correto quando nos referimos ao poder público. Não há essencialmente a construção do respeito à função e sim sua imposição. Tampouco a descoberta pública da proteção responsável, mas sim a da incapacidade do poder em dialogar com as relações.

As invasões praticadas de maneira ostensiva revelam algo muito mais duradouro: não estamos aplicando as leis, estamos assistindo suas construções por caminhos tortuosos e impositivos. Ao que me lembro dos livros de história, a manutenção de qualquer silêncio leva o homem à falência de sua existência participativa em sociedade.

Como escrevi anteriormente, qualquer fiscal ou policial é bem-vindo a meu teatro, desde que tenha comprado um ingresso ou traga em mãos um mandato. De qualquer outra maneira, há que enfrentar suas arrogância e ousadia igualmente nas mesas de um tribunal.

10 agosto 2009

sem entender...

Espetacularização do poder ou necessidade exibicionista de controle? O que acontece em São Paulo? Policia é bem-vinda ao teatro sempre. Com o ingresso em mãos ou mandato. De qualquer outra maneira, é autoritarismo gratuito.

04 agosto 2009

Não é mais proibido proibir

Acontece uma vez. Depois outra. E se repete travestido em acontecimentos novos aparentemente sem conexão. As pequenas ações, as despercebidas, são praxes comuns no Brasil e não só aqui. Uma medida provisória, uma proposta aparentemente ingênua solta ao vento, supostas sugestões corretas etc. Dessa maneira, cria-se mais do que intenções, gera-se a absorção de costumes transformando casualidades em válida possibilidade de relação.

Vivemos uma época perigosa, quando o politicamente correto determina o sentido de participação responsável. Nada é mais incontrolável e manipulável que os desejos populares, e por serem muitas as necessidades e ausências estruturais coletivas acabamos por transmitir nossas ansiedades ao Estado, exigindo-lhe o puxar de volta as rédeas e o domínio dos descontroles que nos atingem de maneira brutal.

Cabe ao Estado, ao fim, situar-se frente tantas ansiedades sociais a partir de dois vértices fundamentais: punição e proibição. Diferentes por natureza e pelo trato de suas funções, ambos, aparentemente intrínsecos, na verdade perdem suas complementaridades no instante em que uma das pontas se revela ineficiente.

Viver uma estrutura democrática pressupõe liberdade de convívio, entendendo este como a percepção ética dos limites individuais para a constituição do limite coletivo. Não havendo por parte do indivíduo a compreensão de seus limites e obrigações, resta ao Estado reorganizar a ordem aplicando justiça aos arredios. Sabemos, desde sempre, e muitos são os exemplos diários, que, “quando ocorre”, a justiça é insatisfatória e ineficiente.

A incompetência pública (ou competência, dependendo de como se olhar o objetivo final) na desestruturação da educação levara o indivíduo a distanciar-se dos valores éticos. Sem compreender a perspectiva do limite próprio, torna-se impossível alcançar o coletivo. A incompetência (ou competência, redundantemente) no punir e a certeza da incapacidade da máquina pública no lidar com erros já previstos levam a não temermos as conseqüências. E a infeliz soma entre os dois pólos expôs ao Estado, como última possibilidade para controlar o indivíduo, a proibição.

Em outras palavras, abrimos espaço para que o Estado intervenha cirurgicamente sobre nossa liberdade. O Estado deixa de agir sobre as conseqüências de nossas ações para antecipar-se a elas.

Assim tem sido lentamente, ações a princípio desassociadas umas das outras, mas que constroem em nosso imaginário a proibição como necessidade natural, esteja ela no anseio de proteger a sociedade contra a violência em todos os seus aspectos, incluindo aí a do indivíduo contra si próprio, ou mesmo em supostas estruturas de recuperação moral.

A questão complica ainda mais no momento em que somos nós a exigirmos do Estado as criações de proibições, quase sempre por entendermos termos perdido o controle sobre nós mesmos. Feito o grito por ajuda ao qual é oferecido ao herói todo e qualquer poder. Aos poucos, a suposta solução torna-se a transferência de responsabilidade do indivíduo para o Estado, dando-lhe legitimidade para intervir de maneira legislativa e jurídica sobre o que deveriam constituir fundamentalmente os princípios éticos de cada um.

Retomando a idéia de que pequenas ações independentes se somam à semelhança de suas naturezas para intervir sobre o imaginário, exemplos recentes de proibições alicerçadas por aclamação popular são o uso obrigatório de cinto de segurança e a proibição do fumo em locais públicos. Em ambos os casos, assumimos a necessidade das proibições oficiais como projetos para nosso próprio bem-estar.

O não percebido, todavia, é que, em ambos os exemplos, a ação do Estado antecede o direito de escolha. Se o uso de cinto serve restrito a nós mesmo, não aplicando sobre terceiros qualquer conseqüência, então não deveria ser uma opção individual, reflexão responsável de cada um? E se tabaco, cigarro, cigarrilha, charuto, cachimbo, agem (como se sabe) sobre os não usuários, não deveria ser igualmente uma reflexão dos próprios estabelecimentos e freqüentadores o convívio com fumantes? Na maneira como é proposta a lei perco eu o direito de sentar com amigos fumantes em espaços que sempre freqüentamos. Tiraram-me o direito irresponsável de não me importar com minha saúde. Tal processo do que se entende por auxílio aos desvarios, na verdade se revela como totalitarismo em sua face mais óbvia.

A compreensão de que pequenas proibições são necessárias toma cada vez mais a perspectiva de boas ações, e, aos poucos, avançam em novos controles e imposições de limites e modos.

A mesma crise sobre o cigarro passa a ser discutida, por exemplo, sobre a necessidade de um personagem fumar durante um espetáculo teatral, já que o público absorverá passivamente as toxinas assim como em uma mesa de bar. Não me prestarei ao ridículo de entender qual deverá ser o órgão a analisar a validade em questão. O que me inquieta é perceber que a mera reflexão exista. Seguindo o mesmo raciocínio, então logo seremos proibidos do uso dentro de nossa própria casa por atingirmos igualmente os não fumantes, empregados, vizinhos e visitas. Afinal, qual a diferença entre um garçom e uma faxineira? Não terão os dois o mesmo direito à saúde?

A tal onda do politicamente correto redesenha o co-existir dilacerando diferenças e diminuindo pluralidades, e nada mais fascista que a higienização do costume e homogenização do viver.

Não existem mais gordos, tornaram-se obesos; tampouco velhos, mas indivíduos pertencentes à melhor idade. Ou deficientes, pois estes passam a se chamar portadores de necessidades especiais. Negros, cuja correção os rebatizaram por afro-descendentes. Quais? Os das proximidades do Saara ou de Angola? A África, aqui traduzida como única, há séculos convive com confrontos tribais e culturais entre povos que lutam pela legitimidade de suas identidades e diferenças. E nós, um povo formado pela mestiçagem, olhamos a todos e tantos feitos iguais, como se o continente africano fosse apenas de negros irmãos de mesma origem. O grotesco vai mais longe do que meramente o nomear e adquire juridicamente o tamanho de ser inafiançável, pior, portanto, que assassinatos e estupros, crimes quais, se o réu for primário, certamente responderá em liberdade, lembrando ainda que o condenado poderá ser liberto após um sexto da pena como prêmio por seu bom comportamento.

Pra quem ainda acha tais proibições incomparáveis, o que dizer das cidades paulistas que assumiram o toque de recolher aos adolescentes? Na incapacidade em educar os filhos e determinar qualquer respeitabilidade, os pais concluíram ser uma ótima saída proibir a permanência dos rebentos pelas ruas. Triste e perigoso exemplo de transferência de responsabilidade, conforme escrevi anteriormente. Outra? A concordância entre pais, especialistas e poderes públicos de que os viciados em drogas poderão ser recolhidos para clínicas especializadas à revelia tanto do usuário quanto da própria família. Ou as proibições das biografias escritas sobre Roberto Carlos e Garrincha que, apesar de não serem constestadas em suas afirmações, foram retiradas das pratileiras por não representarem os biografados da maneira qual se entende correta frente ao imaginário popular já construído. Ou o movimento pelo fim da nudez nas novelas, teatros e cinemas, iniciado por atores e atrizes, por entenderem que qualquer exposição corporal explicita o artista a incômodos e exageros, sendos os propositores do dito movimento incapazes de compreenderem o corpo como código simbólico e o nu como referencial narrativo. Ou a cidade limpa, de São Paulo, e a proibição da presença de outdoors. Ou os prefeitos que determinaram a prisão por vadiagem aos que por ventura permanecerem nas ruas sem qualquer ocupação, estimando o prazo limite de trinta dias para que consigam estar empregados. Como essas tantas outras proibições deverão ser acrescidas aqui ao tempo. Basta nos atentarmos a quantidade de vezes que os veículos de comunicação são proibidos de noticiar e relatar a rotina política.

Ora, aos poucos damos as armas aos monstros. Imagine uma sociedade onde o indivíduo pode ser punido pela maneira errada em se dirigir a outro, ou por ser considerado um perigo para si mesmo, ou por circular em locais e horários impróprios, pelo uso de substâncias lícitas em locais públicos, ou pela maneira como se mostra, ou por contrariar expectativas, ou relatar fatos, ou pela vontade de não fazer nada... Como falar, aonde ir, quando ir, como se portar, o que usar, com quem, onde, o que ler, o que e como consumir. Vendemos diariamente nossa liberdade pelo troco de uma suposta segurança. Assumimos a incapacidade de cuidarmos de nós mesmos, dos nossos entes. E dia a dia uma proibição aqui outra ali nos conduzirá à convivência perigosa com tal costume.

Nenhuma ditadura-censura é mais perigosa do que a silenciosa que conta com apoio popular. E enquanto isso, Sarney, Lula e Collor revelam-se gentis irmãos nos bastidores do planalto e microfones de todo tipo. Qualquer prognóstico agora certamente será ingênuo ao que há de vir. A única preocupação, verdadeiramente, é que, quando ele puder de fato ser enxergado, talvez já esteja calado por nossa própria cegueira.