Antro Particular

18 maio 2011

PTERODÁTILOS: a inevitável extinção da natureza humana

Há algo de mais importante no que se assiste em cena do que a qualidade e eficiência daquilo que é apresentado. Essa deveria ser já uma compreensão comum, quando falamos sobre o teatro contemporâneo, mas estamos bem longe desse pensamento se tornar de fato uma regra. Ainda me incomodam as observações limitadas de muitas análises por aí sobre se o ator está bem, se a direção fez seu trabalho direito, se o texto faz sentido pra aquilo que se imagina ser o sentido importante para a realização de qualquer discurso. O que tenho pra mim, não faz o menor sentido, não tem a menor importância. Claro que é preciso tempo para se discutir por outros caminhos ou para se comprar brigas (quase sempre inúteis aos dois lados ou três ou todos). Também enfrento o dilema do que permitir à caneta, até porque ainda escrevo antes de dar o formato no computador.

Todo esse rodeio pra dizer que esse texto, após um longo e penoso distanciamento das resenhas sobre os espetáculos em cartaz, faz-se por duas necessidades: a primeira, entender certas necessidades do crítico ou jornalista, ou seja lá como se denominar, de não se confrontar à cena, colocando-se como julgamento de um certo correto técnico e intelectual, sem qualquer contaminação – pra melhor ou pior – com o material artístico, coisa essa que, repito-me, não engulo com tanta simplicidade. A segunda, buscar naquilo que se coloca algum contato mais interessante que a própria obra aproximando-a ao meu presente.. Nada simples. Muitas vezes, quando a tal da obra se limita a um produto e preenchimento de específicos nichos de mercado, entretanto, são esses ainda mais fáceis, pois a fraude de um discurso quase sempre se evidencia na argumentação poderosa de ser a obra uma paixão ou coisa que a valha.

Dito isso e exposto meu incômodo, resta nomear a obra visitada, então: Pterodátilos, em cartaz no Teatro FAAP, com Marcos Nanini e Mariana Lima, entre outros, e direção de Hirsch. E, antes que os puristas da crítica me crucifiquem por me “abster” de “analisar” o espetáculo, digo: Nanini e Mariana estão geniais, Hirsch compôs um espetáculo impecável  na construção rítmica da narrativa e na construção estética, a luz compõe uma ambiguidade e frieza precisa ao desenvolvimento dos personagens, e o cenário de Daniela Thomas torna o espaço cênico cúmplice da direção sem nada de obviedade, com uma carga poética de comentário sobre a realidade dos personagens madura e digna. Enfim, podemos ir mais longe agora?

Enquanto texto de Nicky Silver é menosprezado, como se possuir uma data ou características de sua época fosse um crime, algo ali se fez tão mais necessário e explícito ao hoje que chega a ser frustrante ser sistematicamente ignorado. Vou tentar resumir: vivenciamos um profundo estado politicamente correto, que acomete os mais diversos níveis de convivência social, levando a identidade do indivíduo a ser igualmente anulada e destituída de qualquer face de seu real reconhecimento. Pterodátilos explode isso da maneira mais desavergonhada possível, expõe o sujeito contemporâneo em suas mediocridades e leviandades próprias, naquilo que socialmente somos impelidos a esconder, mais por não ser correto demonstrar do que por não ser correto possuir. Preconceitos, egocentrismos, vaidades, invejas e tantos outros aspectos naturais do Homem fluem com a violência ridícula de suas naturalidades sem mascaramento de emoções, desejos e discursos. E, ainda que alguns insistam na forma, na técnica, nisso e aquilo, como datação, não seria, em tempo de proibições e imposições, a argumentação mais valorosa dos por quês se realizar o espetáculo?

Todas as falas em Pterodátilos almejam atingir o incorreto. Todas as relações buscam a anulação do outro. E, na soma dessas vontades, minha conclusão se confunde entre “por que preciso ouvir isso” e “quem disse que o ontem é mesmo ontem”. As respostas são simples: preciso, sim, porque isso é a realidade humana também, essa que insistem para que eu esqueça, não mais perceba; e havia no ontem a caricatura de um futuro que, chegado, revela-se piorado em seu estranho e aceito silêncio sobre o óbvio.

Moramos no Brasil, seja lá o que isso for, então penso por aqui, pois é o que me limita e resta. País dominado pelo politicamente correto, onde nada é mais incorreta que a política que o define. Somos bombardeados diariamente, minuto à minuto, por um grau tão absurdo de degradação moral de nossos parlamentares, que fica complicado construirmos, ou se esperar que o indivíduo encontre na sua colocação social, qualquer tipo de valor coletivo e generosidade. Então, como se manter digno, trabalhando à sua maneira, aprendendo a lidar com os próprios preconceitos, egoísmos, vaidades, leviandades etc., para que não hajamos sobre os outros, permanecendo em uma espécie de latência controlada em favor do bem comum? Não com os exemplos que temos. Não com o nível de absurdos e impunidades que convivemos.

A tal naturalidade desses sentimentos – existam eles por deformação de caráter ou deformação de um sentido de defesa e sobrevivência – impõe-se, por espelhamento, ao que vulgarmente denominamos por “foda-se”. Isso mesmo. Se eles são assim..., se tudo é assim... Mas é preciso demonstrar controle, não permitir que o “foda-se” se torne regra. É preciso manter a ordem para que as coisas permaneçam como estão, ainda que “foda-se” se nada está bem, esse é o intuito, afinal.

Em Pterodátilos não há controle, o que é muito diferente de se estar descontrolado. A violência é meramente mediana, está no comum desprovido de máscaras, e isso é vergonhosamente o que mais nos agride: a falta de certa correção política de se exibir socialmente, a face explícita que passamos a esconder mesmo no espelho. Em épocas onde tudo é uma questão de comportamento correto, o incorreto é generosamente provocativo e necessário. Parabéns também à FAAP por aceitar e entender a importância do espetáculo, não haveria lugar mais interessante para lhe dar sentido.

04 maio 2011

pra quem não tem medo de escuro

Acontecimentos recentes levaram a me trancar em uma espécie de solidão, certo porão onde fui obrigado a encarar a cegueira que, até então, dava conta de esquecer o óbvio em troca do pragmatismo da crença de que é possível existir artista sem outras motivações que só a arte. Ingenuidade minha, a crença de que a arte serve a um propósito sobre o outro, de que o que lhe cabe está no diálogo com quem se debate, revelou-se, cruelmente, no servir a um propósito sobre si mesmo. Onde estão os artistas que acreditam servir anarquicamente a toda sorte de desconstruções e desordens pela mera importância de se chacoalhar os valores e dilemas estabelecidos? Se foram. Estão velhos como eu. Os novos artistas se fundamentam em relações tão frágeis de argumentações sobre si que o transitório, pra não dizer volúvel, mais parece preceito do que consequência. A relatividade do tempo tomado pela urgência de resultados, ou o imaginado como, impõe condições de convivência e produtividade irreais daquilo que se deveria entender arte.

Primeiro porque não cabe ao artista colecionar resultados, mas somar, na concepção de proposições, um discurso que permanecerá aberto e acessível; faz-se pela necessidade em fazer, e não por reconhecimento ou qualquer outro valor. Como localizar, então, os artistas atuais? A expectativa do resultado pressupõe um fazer destinado ao contentamento de si mesmo, ao reconhecimento pelo outro, ao produto e não ao processo. Distoa o tempo nessa urgência líquida, como diria Bauman, onde o próximo se faz mais interessante, onde as relações se comprometem mais pela justificativa do que pelo objetivo, levando a uma perigosa inversão na ideia de sujeito. Zizek já discursou sobre tal inversão de nossa percepção no contemporâneo. Passamos o Eu ao centro do discurso nos esquivando de perceber que sujeito é aquele que se sujeita. Essa sutil transposição do Eu para o centro justificativo da ação está no homem comum e está igualmente nesses artistas, já que é inevitável pertencer ao tempo em que se vive.  No momento em que a justificativa supera o objetivo e o sujeito se torna face própria, o artista se transforma em uma espécie de bolha isolada em si mesma, não permeável, disponível apenas aos seus próprios interesses, enquanto se centraliza na ação e responsabiliza ao entorno a necessidade de seu existir.

Sou velho, já disse. Não acredito nesse artista e me corrijo quando me percebo transitar por tais estados. O artista que busco em mim e no outro está mais disponível a ilusão de um objetivo injustificável, determinado a exercer sua existência como uma espécie de provocação inútil, e não no profissional estruturado em funções precisas e metas contratuais. A perda da identidade do artista se dá, na geração mais nova, sobretudo, pela compreensão de que lhe cabe uma função, um papel, de que sua ação ou discurso é o valor de seu reconhecimento, como se seu existir artista fosse, antes de tudo, uma necessidade do outro. A idolatria do sucesso, a midiatização do reconhecimento, a produtificação do resultado levam os artistas a acreditarem que tudo existe para si. Pelo contrário. Artistas são frutos da ausência do outro e buscam no outro os caminhos para se encontrar alguém. Ser artista é, antes de mais nada, a incapacidade em escolher como ser alguém dentro do que permite e determina a estrutura comum. Ser artista, portanto, não é ser especial, mas incomum, naquilo que o distingue de qualquer ideia de pertencimento social.

Um artista que funciona em horário comercial, que nega a trajetória como construção paradigmática (quando a ação é processo e não produto)  será de fato um artista? Subir ao palco não é fazer arte. Subir ao palco é a manifestação concreta da oferta de um produto qual se denomina por teatro, por exemplo. A arte está anterior a isso. Existe no caminhar, na escolha do próprio produto ofertado, na percepção de ser preciso oferecer mais outro, pois qualquer resultado não dá conta de solucionar a inadequação do existir em todas suas camadas. Enquanto os artistas jovens se incomodam com os fazeres, compreendendo processo como monotonia, no fundo, esquecem de que é exatamente aí que o artista se consolida. Do contrário, o que resta é um bom ou pior, eficiente ou não funcionário à serviço de uma função. Mia Couto escreveu em um artigo recentemente que as novas gerações estão mais disponíveis ao emprego do que ao trabalho. Assim também os novos artistas. Quem não quer um salário ou um sustento? Quem não quer ter horários certos, tempo livre para ser usado ao sabor de outras vontades? Quem não quer ter o direito de exercer apenas o que lhe cabe como obrigação? Difícil encontrar disposição contrária a isso tudo, tanto quanto é difícil encontrar artistas verdadeiramente.

O artista qual reclamo enxerga que a arte, muitas vezes, não é a estrutura salarial ou de sustentação da pessoa, visto que a arte, diferentemente do entretenimento, possui pouca importância no cotidiano. Esse artista, tal qual imagino, faz de seu tempo o laboratório de sua arte, entendendo que a dedicação não se impõe obrigação, mas necessidade de ir além de si mesmo. Na verdade, o que mais se tem hoje não são artista, são profissionais da arte, empregados da arte. E o que parece escapar dos jovens é que o trabalho pode se revelar seu emprego sim, só que, quase sempre, a crença ou a paixão ou a necessidade de se observar, seja lá como quiser entender, é o elo entre as duas coisas. Não acredito em um artista empregado, obrigado, burocrata por profissão. Permaneço romântico e ingênuo crendo apenas naquele que torna sua necessidade de fazer, de criar, de trabalhar, a própria respiração, a própria existência. Coisa de velho, talvez, você dirá, de quem, romântico, pertence a outra época. E aí chegamos ao segundo ponto.

De volta ao porão qual me tranquei, o escuro do entorno, de onde suponho estar sozinho, leva a perceber que a solidão em si não existe, tanto quanto o escuro que me impede de ver o outro. Agamben vai traduzir parte desse escuro na busca por compreender o contemporâneo. Em sua palestra, demonstra que o escuro que vemos ao fechar os olhos não é a ausência de luminosidade, mas a produção de células específicas que atuam no processo cognitivo levando o instrumento biológico a enxergar assim. Goethe vai produzir o negro na mistura de todas as cores, contrariando a lógica física do branco como resumo da soma dos matizes. E de certo modo, ambos dão pistas de que escuro é esse qual me encontro, tornando mais fácil reconhecer o tal porão.

Define Agamben o ser contemporâneo como aquele que consegue pertencer ao seu tempo sem estar plenamente coincidente a ele, permanecendo seu olhar fixo ao tempo para enxergar a obscuridade própria de sua época e ser capaz de traduzi-la frente a outros tempos. A escuridão, essa fuga da luz (conhecimento e observação comuns) sombreia a realidade de modo inerente ao seu existir, e o artista contemporâneo nada mais é do que o vivente nessa sombra, deslocado da realidade explícita, cujo discurso se manifesta por instrumentais estéticos. Era por isso que Goethe reconhecia no negro a soma de tudo. Por estar nele a informação comum do tempo em que se a enxerga e as arestas imperceptíveis para quem se mantém limitado a estar no centro. Quando encaro meu porão descubro que a solidão é inerente a qualquer tentativa de ser de fato artista. Não cabe coletivizar aquilo que se dá na descoberta pessoal, porque poucos autodenominados artistas se interessam pela construção de discursos injustificáveis. Parece que o único foco para os jovens artistas é mesmo a iluminação de suas capacidades e suas felicidades, enquanto me pergunto, como pode ser feliz um artista, ao passo que, por si só, sê-lo é a própria manifestação de incompreensão e descontentamento de sua existência no mundo como se revela?

Se o filósofo estiver certo, então estar nesse porão é inevitável e digno, antes de tudo, e se me coloco artista, então, necessário também. Se o poeta acertar, há na escuridão que me rodeia a presença de tantos outros como eu, disponíveis a agir pelo objetivo de traduzir o contemporâneo pela sua face nebulosa e escondida, ainda que isso implique em mais trabalho do que emprego, mais ocupação do que salário, mais tentativas do que reconhecimentos, mais solidão do que diálogos. Mas, afinal, do que valeria ser artista se não fosse por isso mesmo, por essa tentativa de encontrar a si no outro e traduzir a todos de maneira irresponsável e paradoxal? Fico aqui esperando conseguir enxergar no escuro outros rostos como o meu. Ainda tenho esperança de que isso possa acontecer. Por enquanto, as máscaras se descolam e cada um segue pra onde lhe toca o desejo. Muitos banham-se de luzes. Prefiro permanecer doído, responsável e absolutamente no escuro.