Antro Particular

28 abril 2007

ROXO: entre a mudez e o silêncio

Muito há o que ser dito e entendido no silêncio. A respiração de quem aguarda, a grandiosidade transformada de cada mínimo gesto, um olhar que seja. Tudo assume outra feição e desperta uma espécie de embriaguez lúcida.

Em Roxo, texto de Jon Fosse, o silêncio é arma dramatúrgica. A simples história de garotos que decidem formar uma banda sem serem músicos ou saberem tocar, misturada a dificuldade própria da juventude em abordar as relações e emoções, expande possibilidades interessantes na forma como o autor constrói os diálogos e principalmente as faltas deles.

Feitas em sua grande maioria por perguntas, as falas fogem do óbvio com a estratégia de compor respostas curtas e dúbias, muitas vezes confundindo a quais questões se referem. E nesse espaço conflituoso, o silenciar dos personagens acrescenta drama e solidão.

Fosse cria um olhar no espelho sobre a perda de nossa capacidade em se comunicar uns com os outros. Como se estivéssemos nos afastando de nós mesmos frente a um vazio construído, não-natural, mas presente e constituinte de nossas almas.

Há a tristeza de se reconhecer nesse vazio em uma época em que o excesso estabelece a perda de identidade e a mídia conduz o imaginário à escassez dos instrumentos de criação e percepção.

Em artigos recentes, pesquisadores afirmaram que estamos ouvindo cada vez menos devido à quantidade de sons sobrepostos e a péssima qualidade desses ruídos. Roxo vai pelo mesmo caminho. E metaforiza com o silêncio como seu maior diálogo, afirmando estarmos igualmente incapazes de nos comunicar graças à futilidade e agressividade de nossos argumentos.

O espetáculo, em cartaz no Espaço dos Satyros, com direção de Fernanda D´Umbra, curiosamente reflete tudo isso. Não pelos acertos em si, mas pela imaturidade do jovem elenco. Não há aproveitamento do silêncio, das contradições e medos, da falta do que e como dizer.

Em ritmo constante, quebrados por momentos de confrontos gritados, a montagem patina sobre o ritmo enquanto esfacela a narrativa e dubiedade pela qual se justifica. Tímida, inconstante, a direção acaba por trazer à cena muito pouco.

O curioso, em si, fica na própria metáfora de como também o acabamento e técnica no teatro estão sendo submetidos ao favorecimento de projetos casuais. Também o teatro sofre a perda de seu discurso em realizações superficiais quase sempre por culpa da falta de tempo e pesquisa.

Muitos são os eventos e projetos atuais elaborados em meio a pressa do fazer, da urgência mercadológica. E tal estratégia, cada vez mais aplaudida pelos governos e comissões, está de alguma maneira determinando esse vocabulário como o correto, confundindo a estética do casual com produções pobres, sem profundidade e voltadas ao novo entretenimento cult do "alternativo". Engano duplo, pois nem alternativo e tampouco cult, ao fim, tais propostas se revelam.

É preciso recuperar o valor da cena, da imaginação, do ator, da técnica, para que tenhamos novamente o teatro em sua real potencialidade. Ou estaremos, como estamos, cada vez mais próximos de recriar o próprio mistério do silêncio que se forma entre o público, porém sem metáforas e contextos, apenas o vazio de não saber falar.

HÁ BULA PARA NELSON RODRIGUES

O pernambucano Nelson Rodrigues (1912-80) é sinônimo do homem carioca, no meio século passado. Jornalista, escreveu crônicas e peças teatrais, e é considerado unanimemente o mais importante dramaturgo brasileiro. Sua obra acompanha a modernização da linguagem no teatro, de Ziembinski a Antunes Filho, e deste às dezenas de espetáculos em cartaz, ano após ano, com diretores e companhias consagradas e amadores grupos espalhados pelo país.

É impossível contabilizar as encenações. De alguma maneira, Nelson Rodrigues se tornou a face brasileira no desenho de personagens cuja única regra sempre fora ir além da moralidade católica para surpreender o espectador em artimanhas repletas de desejo, sarcasmo, hipocrisia e morte.

Contradizer, então, a aceitação histórica de genialidade, seria por demais ousadia minha. Mas trago algumas inquietações.

Pouco tempo atrás, Ribeirão Preto teve organizado uma festa funk na qual o ingresso feminino se dava gratuitamente com a falta da vestimenta íntima, verificada tecnicamente através de um espelho direcionado sob as minissaias. Muitas dessas jovens eram menores de idade, e algumas, ainda, deixadas no baile pelos próprios pais.

Se escrito por Nelson Rodrigues, talvez os pais entrassem para dançar com suas filhas, e não antes que escondidos ele ou ela retirasse a peça dentro do carro, à força ou como sedução juvenil. Um amor inquieto, um estupro, a prostituição, a morte estariam associados à ação. Mero pretexto para escancarar a vergonha e corrupção humana na classe média brasileira.

Nada disso. O funk ribeirãopretano fora apenas uma diversão de meia-noite, aceita pela sociedade e pais, nas quais garotas e garotos se jogaram ao prazer da dança e erotismo sem outras preocupações ou metáforas sobre a conduta social.

Exemplo mínimo, apenas, e a questão: como tratar então, na cena contemporânea, a dialética nelsonrodriguiana, as perspectivas psicológicas pelas quais personagens e situações são erguidos na narrativa, se vivemos um mundo desprovido de contradições morais (e não vou estabelecer aqui o que é certo ou errado pois não se trata mais disso) e quaisquer tipos de repressão institucionalizada junto aos valores familiares?

Mudamos para melhor e pior, e a liberdade, como não poderia deixar de ser, trouxe excessos e desvios. Os tais inevitáveis vícios da democracia de que tanto fala Arnaldo Jabor.

Voltando ao teatro... É do contemporâneo a busca incessante por traduzir a cena por aspectos outros que não o da interpretação submetida ao psicológico, como a escola stanislavskiana, na qual o personagem é elaborado pelo desenho de sua persona.

E é sobre tais aspectos da cena realista que Nelson Rodrigues cria sua dramaturgia, e por onde está sua maior força de diálogo com o público, na tentativa de veracidade sobre as situações apresentadas no palco.

Como traduzir Nelson Rodrigues ao nosso tempo é um desafio ácido que inclui desde a recriação da linguagem cênica e narrativa até a redesenhar suas personagens no que pode haver de mais próximo ao que nos tornamos. Do contrário, levamos Nelson a duas armadilhas: restringi-lo ao comodismo histórico de uma época apresentando-o ingênuo frente aos fantasmas e segredos que hoje nos perseguem.

25 abril 2007

EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DO VAMPIRO: absurdos de um espetáculo que não existe

Inevitável desassossego. Muitos me perguntam, entusiasmados pela polêmica, ou com o prazeroso olhar de provocação, sobre como leio a pública pendenga entre Gerald Thomas e Felipe Hirsch. E, entendendo em alguns casos particulares a relevância do meu parecer, nada mais me restou a não ser assistir ao espetáculo Educação Sentimental do Vampiro, do diretor curitibano. Antes, contudo, das conclusões, é preciso voltar ao tempo...

Minha aproximação e amizade com Gerald fundamentam-se em um simples aspecto: respeito. Vocábulo abandonado no cotidiano em geral, fez-se ao tempo sentido maior da relação que se estende hoje já há oito anos. Uma década, diria eu, portanto, tendo em vista aspectos de simpatia artística e conceitual que impulsionaram minha vontade de aproximação. E lidamos dessa maneira um com outro. Olhando nos olhos. Divertindo-se. E no meu caso, apreendendo um sabor amargo de realidade só encontrável nos mais disponíveis professores. Defino-o assim: de ídolo a mestre, deste a amigo. E meio pai-irmão distante em seus discursos afiados a me sussurrar caminhos e acusar desvios.

Por isso e os trabalhos passados, em todos os cantos pipocam pessoas a me pedir opiniões. Ora, Gerald é adulto e capaz de defender-se sozinho, o que o faz sem ajuda de qualquer outro. E deixo ao lado irritados os irritantes que me cutucam nos bares e ruas, com seus dedos a me apontarem, seus desapontamentos em minhas faltas de respostas. Danem-se todos. Afinal, Gerald mantém na rede um blog, então que escrevam e perguntem a ele, ora.

Infelizmente não é isso o acontecido, e as indiretas e sorrisinhos de canto continuam cínicos a me encontrar com suas conclusões, acusações, comparações a se sucederem repetidas e cansativamente.

Há em Gerald um pouco de Caetano Veloso, Arnaldo Jabor, Wally Salomão, Zé Celso, dos poetas malditos, das putas ofendidas. Línguas inquietas, repletas de olhares sobre a vida, com verdades vividas nas ruas e não só em livros, da experiência da revolta praticada, da contra-revolta, lançando aos microfones gritos, berros, urros, na tentativa de trazer ao mundo mais do que palavras. Vão além, no atingir pelo ouvido os cérebros, os sentidos ao dar sentido, e se fazer meio e nunca fim. Incomodam na verborragia desrespeitosa do pensamento pessoal, da reflexão diária em formato de interferência incoerente juvenil.

Tudo o que mais respeito em alguém de alguma maneira passa por esse estado de consciência em ser transparente.

Volto, então...

As acusações e ataques entre os diretores foram construindo ao redor um espectro grotesco da falta de referência histórica e avaliação crítica sobre a montagem em si. Surgem defensores e agressores de ambos os lados. Nada se diz, enquanto a platéia foca na polêmica pelo simples prazer em tomar uma posição ainda que esvaziada de conteúdo analítico objetivo e fundamentado. Ficam por aí gritando quem odeia, sorrindo quem se satisfez. Até que um novo assunto surja e tudo simplesmente desapareça das páginas da internet e jornais e ruas. Feito boato velho, sem utilidade e qualquer valor.

Fui ao teatro do Sesi disponível ao que fosse, sem me ater às discussões entre os dois. Esforçando-me para abandonar pré-julgamentos. Determinado a assistir de maneira íntegra aos códigos de criação.

Dados os três sinais, a expectativa.

Luzes apagadas. O abrir das cortinas. Fumaça. Painéis labirínticos fatiavam o espaço em colunas verticais que ocupavam toda a altura da imagem. Música, uma melodia instrumental em tom de orquestra clássica. Luis Damasceno surge por detrás de um dos painéis e segue ao centro do palco enquanto a luz revela gradativamente cenografia e ator. Um amigo me cutuca e sussurra: “é absolutamente igual!”. Refere-se à montagem de Um Bloco de Gelo em Chamas, espetáculo de 2006, de Gerald, com o mesmo Luis no papel principal.

A neutralidade com a qual preparei-me para assistir a peça, esvaiu-se em pouco menos de um minuto. Sinto uma mescla de incredulidade e inconformismo. Percebo estar em choque e pânico, constrangido pelo ridículo dos atores, pelos conhecidos na platéia e a certeza de saberem eles os meus pensamentos. A peça continua. Vem mais coisa por aí. Trilogia Kafka, Carmen, M.O.R.T.E, O Império das Meias Verdades, e até mesmo Um Circo de Rins e Fígados. Há um pouco de tudo em tudo. Todo o tempo. É como se assistisse a uma redução simplória a meros efeitos dramáticos pinçados dos espetáculos de Gerald. Um panorama ingênuo e distraído de duas décadas de teatro.

A cenografia de Daniela Thomas retrata a redundância e falta de criatividade com a qual vem realizando suas criações atuais. Mais para gigantescas instalações, sem muito acrescentar aos espetáculos. Pelo contrário. Disputando estética e narração com a cena, tais cenários acabam por distrair o público em efeitos, que no caso de Felipe, sobretudo, juntam ainda a desnecessária utilização de vídeos-projeções que pouco ou quase nada oferecem a um discurso híbrido.

Daniela se apropria do repertório plástico criado em parceria com Gerald Thomas, nos muitos anos de trabalho em conjunto. Talvez por se ver igualmente proprietária sinta-se à vontade para se autocopiar. Cópia da cópia vista na recém aberta exposição sobre Clarisse Lispector, no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, com semelhantes módulos-tapadeiras-espelhos, tais como no espetáculo em cartaz. Recordo-me de Platão. A cópia como inferior ao original. A arte como cópia da cópia. Entretanto arte não mais existe. Como se o filósofo brincasse em uma máquina xerox, Daniela esquece o elemento primeiro para criar, e sem o qual nada se justifica ou surge, nasce e existe: imaginar.

Ainda que monótonas, os rostos projeções revelam outra instigante coincidência ao lembrarmos das gravuras de Evandro Carlos Jardim, para as reedições dos romances de Dostoievski, pela Editora34. Mesmas poses, semelhantes traços, aparecem e somem povoando a cenografia durante toda a peça, representando as emoções e sensações dos personagens quais assistimos. Evandro, um dos mais importantes artistas plásticos brasileiros, não está citado nem em referência nem em homenagem. Ficam os rabiscos como feitos de originalidade, e sua redundante maneira de querer convencer o público a acreditar no não crível.

Enquanto as 12 cenas que o compõe são apresentadas monotonamente por uma encenação no mínimo ingênua de tradução simultânea dos contos em ações, quase sempre sublinhadas pela narração de um ator mais ao lado ou em narrações em off, muito fica a se questionar.

Não há objetivamente outro interesse nas cenas que não a figuração dos contos, assim como não há uma conceituação da interpretação expressionista que a justifique, há não ser enquanto estratégia de trocadilho com o vampiresco apelido de Dalton Trevisan, atraindo outras citações, como Nosferatu, de 1922, de Murnau. Os atores permanecem aprisionados nos desenhos corporais típicos, enquanto a direção parece esquecer que o expressionismo tem também sua linguagem no teatro moderno. E ainda que alguns associem a estética do trabalho com a produção de Tadeusz Kantor, pouco ou quase nada se vê do trabalho desenvolvido pelo Cricot 2, apenas simplificações óbvias de quem com tal proposta não tem muito para onde ir.

No final, a sensação de ser a Sutil Companhia de Teatro outro grupo amador, contudo financeiramente abastado, sem proposta própria filosófica e artística.

O berreiro de Gerald não ocorre pela mera apropriação de suas obras, mas pelo reconhecimento de uma carreira que muito acrescentou à cena brasileira e internacional. Fora ele, e ainda o é em muitos aspectos, o responsável pela modernização do teatro pós-Antune/Zé Celso, ao introduzir o discurso de uma cena construída pela narrativa plástica e associações sígnicas, entendendo o ator como potência de elaboração imagética, em uma compreensão mais ampla de imagem. Algo que hoje semiótica e estudos sobre corpo discutem com certa facilidade. Gerald flutuou nisso há mais de vinte anos. Abriu um longo caminho estético pertinente até nossos dias. Incorporou o discurso da urgência política, da contradição dos fatos, da violência moral ridícula que nos assola. Gostem ou não, ele o fez. Transportando cena e dramaturgia a novo patamar, estabelecendo outros paradigmas. Redigindo uma historia conjunta com o movimento teatral.

As desavenças e desaforos entre Gerald e Felipe devem sim ganhar destaque no circuito teatral. É preciso enfrentar os padrões consolidados na cena artística brasileira, em muitos casos meros instrumentos de repetição e apropriação mercadológica. Todos temos direitos iguais, e defendo a liberdade do artista ao seu potencial criativo, porém, sem o assumir referências, tais posturas nos revelarão plagiadores, imitadores, aproveitadores da ingenuidade popular. Gênios são eleitos por todos os cantos nesse país. Muitos correm por isso. Grande parte, na verdade, sobrevive em respeitos forjados por mentiras e manipulações.

Usufruto político de alguns, capacidade industrial de outros, influências pessoas, camaradagens estratégicas, possibilidades mercadológicas, escambos diversos. Nada de novo na maneira como a Cultura é elaborada. Desde sempre por aqui é assim. Mas, seja como for, o silêncio cúmplice da crítica e artistas conduzem cada vez mais ao desaparecimento o artista-criador com sua visão de mundo própria e caminhos a serem desbravados.

Talvez esteja eu apenas nostálgico de um específico tipo de artista. O imaginado quando decidi esquecer a medicina e me aventurar por essas estradas. Homens de outro tempo. Feito Gerald e tanto outros. De vozes fortes e verbos ácidos. Mãos inquietas e dedos em riste. Aqueles de quem tanto ouvi falar no cada vez mais longínquo século passado. Porque os destes, os novos, os que surgem a todo instante como criações da mídia, não podem ou devem ser realmente levados tão a sério.

22 abril 2007

PRÊT-À-PORTER: a fala simples de um teatro complexo

Uma década atrás, Antunes Filho surpreendia público e estudiosos do teatro oferecendo um encontro no saguão do Sesc Consolação, em São Paulo. A euforia tomou conta da cidade, e de alguma maneira todos os setores, de estudantes a profissionais e críticos, aguardavam as palavras do diretor e a estréia anunciada de "Prêt-à-Porter".

Com o tempo, "Prêt-à-Porter" foi se consolidando na cena paulista, e a seqüência dos trabalhos abarcaram outras cidades dentro e fora do país. Novamente, Antunes Filho estabelecia paradigmas no processo de criação teatral.

Que o ator é seu ponto inicial e final de construção estética sabemos a muito. O diferencial ocorreu na organização e coordenação de um processo onde o ator é fundamentalmente criador, do texto à voz e interpretação, sem interferência determinante do diretor.

A radicalidade do que parece em primeiro instante óbvio e simples, ou seja, o ator como pilar central, foge da percepção do público, ao fim espectador apenas das cenas curtas. É preciso compreender que a visão do ator-criador não é nova e pode ser buscada dentro da história sob vários vieses. A diferença, portanto, encontra-se na união entre o método de preparação do ator desenvolvido ao longo das últimas décadas por Antunes Filho e a sua utilização em discurso criativo.

Aos poucos, Antunes chegou ao impasse de ter igualmente um trabalho de aprofundamento técnico da poesia dramatúrgica. Nesse mesmo encontro de 1997, afirmou categoricamente: "só teremos novamente bons atores quando tivermos novos bons dramaturgos". Com o passar dos anos, o Centro de Pesquisa Teatral (CPT) passou a abrigar igualmente um espaço destinado a jovens dramaturgos.

Hoje, "Prêt-à-Porter" dialoga com essa criação textual, oferecendo-se como concretização do texto e estímulo de criação.

Os PPs, como foram apelidados, prestaram um serviço ao próprio aprimoramento de Antunes. Enquanto a seqüência de montagens trágicas gregas, dirigidas nos anos passados, eram, sobretudo, desdobramentos dos resultados surgidos nos PPs, de certa maneira, condicionando o diretor a complementação do processo, pouco de fato se viu de sua mão autoral, ainda que uma visão de mundo muito particular fosse oferecida na compreensão do texto.

Se por um instante a independência dos PPs levaram Antunes à solidão, por outro, o inquieto investigador se colocou em frente ao espelho de sua história e respondeu aos desacertos com a impecável montagem de "A Pedra do Reino", de Ariano Suassuna, em cartaz no Sesc Consolação, SP. A impossível transposição da literatura para o palco concretiza o que há de melhor em Antunes, em um espetáculo histórico e sem dúvida alguma marco de sua trajetória recente.

Ribeirão assiste agora a nova seqüência de "Prêt-à-Porter", enfatizando o discurso de alguns no apontar a importância da descentralização da produção profissional das principais capitais. Possibilitar ao processo maior ênfase na experimentação, desassociado da crítica analítica, que se fundamenta quase sempre pelo entendimento da obra enquanto produto acabado, é uma das vantagens das cidades periféricas e do público, que, de modo geral, têm escancarado à sua frente o elemento mais significativo de qualquer criação: a investigação.

07 abril 2007

LOUCURA: e previsibilidade

Em cartaz no Viga Espaço Cênico, o espetáculo Loucura, da Cia. Elevador de Teatro Panorâmico, tem direção assinada por Marcelo Lazzaratto e interpretação de Gabriel Miziara.

A montagem traz à cena elementos de um suposto teatro de vanguarda. Apegado a "regras" de como deve ser a cena contemporânea, o texto é uma junção de trechos de Fernando Pessoa, Santo Agostinho, Rilke, Dostoievski, Guy de Maupassant, Jung, Shakespeare, Camus, Büchner e Artaud.

Há certo risco na construção dramatúrgica por meio da colagem textual. A previsibilidade das escolhas acaba enfraquecendo a possibilidade de ir além da construção narrativa para gerar de fato um instrumento poético do imaginário feito em palavras.

Não há surpresa no monólogo hamletiano do "ser ou não ser", por exemplo, já tantas vezes explorados por centenas de contextos por aí. E igualmente não vão além as escolhas dos outros autores, mais próximos a uma primeira impressão preocupada com a citação de trechos corretos do que propriamente ao estudo da estética que retrataram.

A opção por construir a cena em espaço limitado fortalece a importância do ator. Contudo, a clara influência do teatro-dança de Pina Bausch pode ser questionada quanto sua finalização. Movimentos que se repetem com o vigor físico artaudiano, desenhando coreograficamente gestos narrativos, parecem ser suficientes para mais esta citação, mas não o são.

A dança em Pina Bausch vai além da expressividade corporal para elaborar um diálogo conciso com a espacialidade e assim determinar o sentir. Ao ser reapresentada, traduz a necessidade do discurso poético em se reler em novas possibilidades discursivas. Não há gratuidade na repetição e sim o desdobramento sobre si mesma na busca íntima do intérprete em ser tradução múltipla.

Não é o que acontece em Loucura, quando a gestualidade coreográfica se contradiz na tentativa de elaboração discursiva e a repetida expressão corporal enquanto representação.

Tratar a loucura como conseqüente ao esclarecimento perceptivo sobre o mundo e a vida é antes uma interpretação modernista que vai ter suas origens no século XVIII e auge na passagem para o século passado. E muitos são os fatos históricos e desenvolvimentos científicos que transformaram o entendimento dessa "loucura moderna".

A compreensão dos fatos pós-guerras trilha caminhos complexos inimagináveis em outras épocas, envolvendo novos aspectos humanos e sociais. Conseqüentemente, também a loucura proveniente da percepção aguçada deve ser outra.

Os loucos profetas agora não são mais espectros intelectuais trancafiados pelo perigo de suas retóricas, estão nos semáforos e ruas urbanas, berrando ou cochichando contra a globalização, conspirações e demônios, feitos mendigos e dejetos ignorados pela sociedade, abandonados em seus delírios ridículos. Não ameaçam mais a ordem e o sistema. Seus provérbios são inúteis.

Estamos, na verdade, mais próximos de Beckett do que de Artaud. E os loucos de hoje talvez sejamos nós mesmos, esquecidos uns dos outros, em nossa insistência muda e surda pelo sobreviver ao tempo.

03 abril 2007

FESTIVAL DE CURITIBA: polêmica em Ribeirão Preto

Nas últimas semanas, o grupo ribeirão-pretano A Trupe Acima do Bem e do Mal cobrou ajuda da Secretaria de Cultura para viabilizar a participação no Festival de Teatro de Curitiba, com direito a confronto público com o Secretário. Nada foi resolvido, e a Trupe acabou por consolidar um empréstimo bancário para que a viagem ocorresse.


Curiosamente, a primeira vez que estive no Festival, em 2002, então como diretor/dramaturgo, apresentei-me no TUC, mesmo teatro onde a Trupe se apresentará. A sala preta, construída em uma passagem subterrânea, contém fatores não revelados pela produção do festival, como falta de ventilação, incapacidade de utilização de todos os equipamentos de luz simultaneamente, poltronas quebradas, mofo, falta de acústica, palco de concreto e um pé-direto com pouco mais de três metros. Mas como participar do festival é sempre o sonho de quem inicia uma trajetória, por que não?

Em 2004 voltei à Curitiba como olheiro de um importante crítico de São Paulo, com a função de acompanhar as peças do Fringe (mostra paralela) e preparar uma pré-crítica e seleção dos bons trabalhos. Eram sete espetáculos por dia assistidos, que me ocupavam do meio-dia às duas da manhã, mais a feitura dos relatórios até as quatro, para que estivem no hotel do crítico antes das dez, para sua seleção.

Insistente, em 2005, retornei com um projeto desenvolvido para a ECA-USP e o Festival. A Casa Provisória tinha a função de apresentar sete novos diretores, além de um extenso ciclo de debates, leituras, mostra de curtas-metragens.

Muitos são os artistas que acreditam que a participação no festival será o início do reconhecimento de seus trabalhos. Quase todos retornam desiludidos. Ainda que o Fringe represente a maioria absoluta dos ganhos, pouco ou quase nada tem sido criado nos últimos anos para contribuir com os trabalhos inscritos. O inchaço cada vez maior de participantes só serve aos cofres do evento e para gerar dificuldades maiores em se conseguir espaço de mídia e público.

Enquanto a Trupe briga pelo direito de participar, indago como determinar politicamente a ajuda exigida. Como estabelecer democraticamente a escolha por parte do município dos projetos aprovados? O que dizer de um projeto recusado, que se inscreve a duras penas e tem seu reconhecimento alcançado nacionalmente? Ou dos financiados, em detrimento de alguns, que simplesmente retornam anônimos como antes, ou pior, com críticas negativas?

Estabelecer um vínculo de obrigação com o Município é atribuir cada vez mais o controle do Estado pela criação. Uma vez desenhado o perfil desejado, muitos serão os trabalhos pensados com o específico intuito de satisfazer as diretrizes listadas. Afinal, conquistar tal chancela pode vir a ser a única maneira de conseguir participar.

É preciso que caiam algumas máscaras. Que o Festival se prepare de fato para receber os artistas ao invés da exploração numérica para agraciar patrocinadores. Que a mídia realmente cubra o festival sem cartas marcadas por personalidades e anunciantes. Que o governo estabeleça uma política cultural que o represente segundo seus conceitos. Que artistas se organizem responsavelmente para consolidar suas possibilidades sem a frenética busca pelo paternalismo condescendente dos políticos. Do contrário, ainda teremos muito bate-boca por aí.

01 abril 2007

ADUBO: O teatro candango e a morte de todos os dias

Os brasilienses do grupo TUCAN (Teatro Universitário Candango) trazem para o palco do CCSP o espetáculo Adubo ou a Sutil Arte de Escoar pelo Ralo. O texto parte do atropelamento do cão Balu para trilhar variações sobre a morte e como a encaramos.

Ora arrancando risos encabulados, ora suspendendo a respiração do público via poesia, a grande destreza do espetáculo está na capacidade múltipla dos atores de se jogar em cenas tão distintas e em ritmo tão frenético. O trabalho eficiente da direção de Hugo Rodas consegue ir além de imagens óbvias para compor universos distintos em uma narrativa não-linear.

Desde a Grécia antiga, a morte é assunto do teatro. Os rituais dionisíacos de destroçar a caça, realizados pelas bacantes, sugerem códigos da transformação do indivíduo em personagem, na substituição da persona própria pela composição de outra, onde tudo passa a ser permitido e relido.

O teatro tem como características próprias a realização estética pelo valor vivo do ator e a pulsação conjunta com o público, a manifestação concreta da criação em tempo presente. Talvez por isso a morte seja desde sempre um dos seus maiores discursos ao lado do amor. A impossibilidade de experienciar a morte faz do teatro instrumento para a busca de sua compreensão. A cada personagem morto sobre um palco renasce um ator, uma consciência, uma vida.

Hoje temos a presença da morte "cotidianizada" pelos noticiários. Perdemos a propriedade do mistério no convívio superficial com a mesmice, com os fatos comuns, ainda que não entendamos qual ser seu significado maior. Isso para os que ainda acreditam haver o que ser descoberto.

Há algo de triste no aceitar a morte. Há algo de errado em entender a morte. A história moderna é feita de guerras e massacres tanto quanto a antiga, contudo nos embriagamos em imagens de violência e opressão e restringimos nossa esperança ao fato de não sermos nós os corpos dentro da tevê. Satisfazemo-nos em nossas poltronas macias observando e sugando a morte alheia na manutenção de um imaginário de horror, sofrimento e pecado.

Morremos todos os dias ao ir dormir? Ou morremos a cada manhã que re-acordamos? Rindo da desagradável impossibilidade de controlar a morte, Adubo... conduz o público a questionar a vida. Não estar morto é estar vivo, e isso por si só é muita coisa. E viver é antes de tudo existir em relação, ou seja, colocar-se constantemente em presença consciente.

Verdadeiramente morremos todos os dias duas vezes. Deitamos sem acréscimos, levantamos para não viver. Elegemos como desnecessária a consciência febril dos fatos que deveriam ser prioritários. Esquecemos o ontem e o antes. Olhamos para um vir que aponta incansavelmente o inexistir ou existir eterno.

E se a morte é a maior realidade, trazer pela consciência a presença da vida parece uma romântica e inútil luta contra o óbvio. Assim nos matamos. E levamos juntos o mundo e a história que de algum modo deixa de ser construída para ser experimentada por osmose, sem controle, sem sabor.