Antro Particular

27 janeiro 2008

DIVINAS PALAVRAS: o inferno divino dos Satyros

É impossível adentrarmos ao Espaço dos Satyros sem termos nas mãos um pouco de suor proveniente da expectativa. Na calçada, amigos se reencontram, artistas diversos circulam com naturalidade. Passamos da bilheteria às cadeiras, ao badalar do sinal, cientes de que tudo pode acontecer a partir de então. E as primeiras imagens revelam a grandiosidade perfeita dos figurinos criados por Márcio Vinícius. Desfila o barroco e seus babados sobrepostos em volumes, surgem representações caricatas das vestimentas marginais das ruas. Em Divinas Palavras, os Satyros retornam ao texto de Ramón Dell Valle-Inclán pela via do grotesco referenciado em Goya e Bosch para construir um devaneio sobre a degradação da humanidade.

Tão quanto barroca, as personas se revelam múltiplas e versáteis, apresentando o Homem em sua capacidade mais primitiva de adaptação pela sobrevivência. E não cabe aqui apenas o sentido biológico do existir, mas, sobretudo, a facilidade no desvencilhar de quaisquer fundamentos morais em nome da melhor opção. Nesse caso, mais do que nunca, o poder de existir sobre os demais.

Ivam Cabral interpreta deliciosamente Lauriano, deficiente físico e mental, disputado por todos por sua capacidade de traduzir a piedade alheia em renda. O benefício fácil da exploração caracteriza mais do que o mero ato. Exibe a condição que vivenciamos tão claramente por aqui, nos trópicos, de chafurdar em restos. Nada é mais representativo da situação atual que a figura paralítica e imbecilizada de Lauriano. E em Divinas Palavras, Ivam traduz mais a apatia do nosso comodismo do que em qualquer outro personagem já por ele feito.

Lauriano expõe as transformações sofridas pelo Homem pós-Guerra: a perda da identificação do coletivo simultânea a incontrolável capacidade de capitalizar seja lá o que for. No mundo moderno aprendemos a valorizar o lucro acima de tudo; abandonamos o desejo pela compra fácil e transitória do prazer, capitalizamos as emoções em respostas quantitativas aos interesses imediatos e superficiais do modismo; esquecemo-nos de imaterializar as relações e as conseqüências de nossas vontades.

Divinas Palavras reconduz a áurea negra das pinturas de Goya para o contemporâneo recriando-a nos infernos de Bosch. Um encontro entre o medievalismo do pavor místico e a monstruosidade humanitária. Agora, o pavor místico se confronta pela capitalização do sentir. Agora, a monstruosidade se revela na pequenez da existência sem valor. Mas de maneira a contribuir na poesia do silêncio de Lauriano a pureza submersa entre os destroços, como um fio frágil de esperança esquecido amarrado em qualquer lugar da história, pronto para ser recuperado.

Mais uma vez, Os Satyros incomodam a burguesia latente nas morais contemporâneas, impondo ao público o suplício de se admitir desagradável. Caminhar pelas esferas do fazer produtificado, conforme as imbecilidades do mercado, seria destruir o que de mais saboroso há nos Satyros: o risco corajoso do incômodo. Em seus palcos é preciso reconhecer a importância de reencontrar o que ainda há de humano em nós, ainda que isso só seja possível pela falta de bons adjetivos.

08 janeiro 2008

POR QUE É TÃO DIFÍCIL GOSTAR DE TEATRO?

Uma das expressões que mais escuto é “não gosto de teatro”, e nesses anos todos venho buscando os porquês. A linguagem teatral formula-se próxima a do cinema. Tempo, espaço, ação, narrativa, personagens, diálogos, conflito e as desconstruções dos mesmos aspectos. Assim como no cinema. Todavia, o teatro distancia-se da tela pela presença real do ator. Não deveria, então, o palco ser um maior atrativo à curiosidade?

Seriam as abordagens os problemas? Não creio. Há montagens para todos os gostos; das conservadoras e clássicas ao experimentalismo amplo e abstrato. Os artistas? Unanimidades como Paulo Autran, com poucos trabalhos em televisão, sempre foram inquestionáveis em qualquer camada social. Os preços dos ingressos? Espetáculos de ponta são oferecidos gratuitamente diariamente, em São Paulo, e nem por isso conseguem lotar as salas.

O problema está a algumas décadas. Perdemos a relação com os vocabulários simbólicos criados pelos artistas. Durante a década de 1950/60, nomes como Zé Renato e Zé Celso romperam com a estética européia e apresentaram outros formatos para a cena, onde o espectador era parte primordial da narrativa. Não é a toa que a ditadura militar invadiu salas e arrancou artistas aos socos e pontapés. Havia na cena teatral características de inquietação e confronto. O aspecto de conduzir o indivíduo para dentro da encenação, exigindo-lhe uma manifestação pública, feria os desejos de silenciar a todos com proibições e censuras.

O exílio dessa geração rompeu o acompanhamento discursivo e conceitual e impossibilitou avanços sobre a construção simbólica do que viria. Perdemos a capacidade de dialogar com o teatro, substituindo-o pela televisão e seus programas controlados e a baixa criatividade do cinema comercial. O teatro perdeu importância.

Novos diretores ganharam a cena, caracterizando os trabalhos por outros vieses, porém ainda isolados do mercado e do reconhecimento do público. E o teatro terminou por se render ao marketing, sem responsabilidade com o passado e o futuro.

Se muito foi sacrificado em torno de décadas de políticas públicas intuídas do desejo de anular a reflexão, não se trata mais disso o problema. O teatro revigora o status social, diferencia culturalmente.

Faltam artistas responsáveis que apresentem mais do que comédias caça-níqueis e dramas novelescos. Deixemos esses argumentos para a televisão, por que, não? No palco, o discurso deve incluir aquilo que o individualiza: o risco do tempo presente. Não existe fórmula para o acerto. É preciso dialogar constantemente com o público e perceber suas defesas e anseios para, a partir do diagnosticado, traduzir algo maior capaz de atingir sua percepção e seus valores.

Cada vez mais o indivíduo perde a capacidade de compreender metáforas e subjetividades. E cada vez mais os palcos trazem traduções superficiais da face do espectador. Sem a elaboração de outros alfabetos simbólicos, o teatro está fadado à caricatura da caricatura televisiva. Viciamos o público ao empobrecimento da linguagem metafórica, cabe a nós recuperar a capacidade de ir além da mesmice.

Mas antes é preciso começar o processo de “deseducação” com os próprios artistas. Que os palcos voltem a servir de gritos e contradições morais. É que melhor posso desejar a todos em 2008.

NÃO HÁ PORQUE TER PRESSA, MAS É PRECISO COMEÇAR A AGIR

Chega ao fim 2007. Ou quase. E a cidade assiste as últimas apresentações nas salas de teatro. Não, não há correria para repor as ausências das platéias. No mesmo e cadenciado ritmo da falta, continuam as bilheterias a carimbar sem pressa os ingressos surpreendentemente vendidos para poucos desconhecidos. Sim, pois os amigos, ainda que cada vez mais raros, esforçaram-se para manter seus corpos presentes nos dozes meses revelando-se a grande maioria.

São Paulo assiste anualmente a uma enxurrada de mais de 700 espetáculos. Peças, por melhor dizer, já que espetáculos em si, nos termos mais comuns da sua compreensão semântica, poucos existiram. Alguns fenômenos de marketing, visitas estrangeiras, sucessos repentinos curiosamente ignorados em seqüência e em detrimento ao próximo “novo melhor”. Nada de diferente nos submundos da cena teatral paulistana. E saímos de 2007 para entrar em 2008 sem caminhos novos, sem muito que recordar.

Saem as premiações e continuam os mesmos. Nada de novo se revela. Seriam os parâmetros de julgamento? As referências dos conceitos? Os artistas e suas repetições óbvias sobre fórmulas supostamente consagradas?

O que 2007 demonstrou é a pouca eficiência da criação, a transparência das máscaras de tantos por aí que nada mais revelam de concreto que não os desejos pelo reconhecimento. Pouco estamos dizendo sobre as coisas, sobre nossa época, sobre o homem e a humanidade. Enquanto a história é conduzida em novas forças, o teatro paulistano carrega o conforto da cegueira e se constitui na cadência da obviedade chata e presunçosa.

É... o teatro paulistano está chato!

Um novo ano bate à porta da frente. E a indiferença dos artistas pela arte mostra-se inércia imutável. Perdemos a pluralidade da face, desenhamo-nos artistas idênticos de acordo com o permitido pelo mercado, submetidos a falsos mecenas cujo intuito é sempre a vaidade de trazer pelo artista seu próprio olhar sobre a vida.

E o que mais parece um discurso pessimista, no fundo, é apelo e estímulo. Mais do que nunca é preciso continuar, ir adiante. Cabe aos insatisfeitos mudar as regras. Aos incomodados quebrar as fórmulas. Acreditar na sobrevivência desses poucos e crer que o próximo ano será, então, o início de um outro.

Mas para isso é preciso haver consciência, é preciso retornamos ao desejo pela ideologia, encarar a realidade pelo prisma da insatisfação e romantizar um futuro outro. Em resumo, é preciso haver propostas, confrontar as certezas cotidianas pela observação subjetiva capaz de reler os fatos em contra-planos simbólicos.

Enquanto, de fato, não recuperarmos a inquietude, o incômodo, a insatisfação, prefiro apostar minhas fichas em um futuro mais longínquo. Fazer a roda girar pode parecer um bom princípio de mudança, mas ela sempre retornará ao seu início. É preciso abandonar as comodidades do reconhecimento. 2008 está aí. Não vejo muito que ainda possa ser rapidamente transformado. Mas guardo um sorriso otimista e prefiro assisti-lo na história como o ano que nos levou a 2009...