Antro Particular

20 maio 2007

KRONOSCÓPIO: A ciência como pretexto dramático

Escrito e dirigido por Ricardo Karman, O Kronoscópio arrisca-se no dilema cientificista de como abordar a arte, partindo do conto russo The Dead Past, de Isaac Asimov, para elaborar a relação entre palco e público.

A montagem faz do teatro sua caixa cênica, incluindo a platéia em seu interior. Paredes se revelam portas, quebrando a frontalidade formal do palco italiano, ainda que neste ocorram os principais diálogos.

A presença virtual, por projeção, de Mariana Martinez gera belos momentos na maneira como a imagem pode incluir a narrativa. No entanto, a força da imagem faz com que a presença da atriz, no meio da platéia, seja desnecessária. Aliás, armadilhas como essa ocorrem a todo momento pela falta do radicalizar os caminhos apontados na direção.

Ainda que interessante, o embate moral que permeia a peça, mereceria maior aprofundamento. No apontar das questões, grande parte da eficácia se deve as interpretações de Eduardo Semerjian e Gustavo Vaz, cuja disciplina e sintonia fortalecem a fragilidade retórica.

A relação dialética entre ciência e arte esteve sempre presente, desde o Renascimento e a valorização dos artistas-cientistas, quando matemática, astronomia e artes plásticas, por exemplo, habitavam o processo de criação. Hoje, não é diferente. Apenas trocamos as ciências, associando a biotecnologia e os instrumentais computacionais, que variam de nanosensores a ambientes imersivos interativos em terceira dimensão.

No teatro podemos, inicialmente, observar dois momentos cruciais na relação com o tecnológico: a mecânica cenotécnica desenvolvida na cena barroca e a inclusão da eletricidade.

Mas como identificar essa relação no contemporâneo? Muitos são os grupos de teatro e dança voltados a pesquisar uma linguagem híbrida que contenha características estéticas associadas ao uso de teorias/materiais científicos. Poucos verdadeiramente chegam a estabelecer um discurso que traga ambos os aspectos como essência. Na grande maioria dos trabalhos, o que se percebe é a submissão de um enquanto o outro se artificializa explorado como efeito de "modernidade".

Criar uma condição para que ambos sejam relevantes ao conceito é entender que não basta tematizar com histórias científicas uma cena tradicional ou instrumentalizar com tecnologia de ponta um discurso estético conservador.

Validar a arte e a ciência, um pelo outro, é desde sempre uma tarefa inócua, mas importante na construção de novos paradigmas para ambos. E é sobretudo nesse aspecto que muitos dos trabalhos patinam sem conseguir ir além, sem um discurso que abarque os sentidos do que é pretendido unir.

Moralizar o papel da ciência é um dos atributos possíveis da capacidade narrativa e ficcional da arte, o que realizamos com certa correção. Porém, é preciso aproveitar a importância do discurso para dialogar com os conceitos e desconstruir as bases da arte. Trazer para a cena outro entendimento do intérprete, da fala, do texto, do espaço, apoiados nas novas teorias. Sem isso teremos, como temos, apenas novas histórias.

CINISMO NA VIRADA CULTURAL

Logo nos primeiros meses da gestão José Serra, então prefeito eleito de São Paulo, reuni-me na Secretaria de Relações Internacionais por conta da organização da Festa da Música, aqui na Capital. E foi durante a reunião que soube da vontade do prefeito em trazer para cá as Noites Brancas, evento cultural europeu no qual a população tem acesso a manifestações artísticas durante o período de um dia.

Serra deixou o município e ocupou a cadeira estadual. E dentre outras bagagens levou à Secretaria Estadual de Cultura o evento, denominado aqui por Virada Cultural.

Em sua segunda versão, mais organizada, a capital recebeu artistas diversos espalhados em mais de quarentas pontos da cidade. Parques, escolas, museus, praças... Houve a preocupação em abranger as áreas centrais e principalmente as periféricas.

No entanto, o gigantismo levou a equívocos como o infeliz show dos Racionais na Praça da Sé. A opção se complica quando confrontamos a existência do palco com o fato de que eventos de grande porte foram suspensos da praça pela sua falta de capacidade estrutural em suportar tamanho peso, correndo risco do piso afundar sobre si mesmo, sobre a passagem subterrânea do metrô e as catacumbas da catedral.

A busca populista pelo imediato reconhecimento numérico das atrações demonstra o quanto a coordenação do evento está distante da origem européia.

Em Paris, as Noites Brancas são comandadas por atrações públicas e privadas. As mais interessantes, no entanto, passam longe das oficiais. Estão nas garagens, cafés, livrarias, ônibus, metrôs e até mesmo lavanderias, onde artistas se juntam e organizam pequenas mostras de seus trabalhos, sem a preocupação de grandes públicos ou arrecadações financeiras, apenas pelo prazer em participar e assumir para a si a possibilidade de divertir e dialogar com uma cultura mais heterogênea.

A distância dada ao evento, em Ribeirão Preto, afastando-o do público desprovido de capacidade de locomoção, seja por qual motivo for, denota a persistência do Governo do Estado na construção de uma ação mais propícia às páginas de jornal do que à população em si.

E enquanto se xinga e reclama sobre a falta de procura dos espaços disponíveis, continuam os artistas distanciados da massa e da possibilidade de encontrar e fomentar um outro público que não o habitual recheado por amigos, parentes e poucas almas interessadas.

Todos gostamos de ser incluídos, de receber convites oficiais, de ver nossos nomes destacados na mídia. Como se a chancela do governo determinasse ao nosso trabalho o reconhecimento que imaginamos merecer.

Poucos são os artistas que aproveitam esses momentos anonimamente, nas portas de suas casas, com seus vizinhos sentados em cadeiras caseiras, despretensiosos frente aos vinte pares de mãos a lhes aplaudir.

Ao exigirmos do governo nossa diferenciação sobre os demais, a tal inclusão, estaremos de fato nos afastando da possibilidade de sermos simplesmente quem somos.

A aclamada Virada Cultural nem bem começou e já se tornou industrial, mercadológica, oportunista. Que me perdoem os artistas (maioria, infelizmente), mas o verdadeiro artista é aquele que jamais abre mão de poder dizer.

E enquanto esperamos os palcos monumentais nas praças, a cultura, lá fora, se faz na frente de uma mera máquina de lavar.

15 maio 2007

CURTO CIRCUITO: não basta falar sobre um palco

Literatura e teatro. Próximas e distintas, cada vez mais a contaminação entre as duas linguagens consolida a importância de se compreender a cena como discurso estético. Próximas enquanto materiais criativos, visto que ambas trabalham, em certo sentido, na elaboração de imagens pela narrativa.

Cabe aos bons livros induzir a nossa capacidade imaginativa para gerar as imagens que compõem os percalços da aventura ou emoções dos personagens, por exemplo. E é do teatro a tradução e materialização das imagens que se formulam na construção dos pensamentos e situações. Imagens... Os livros a nos permitirem criar, o teatro a nos oferecer traduções.

Ao tempo em que ambas são também igualmente distantes ao observamos pelo prisma da estética, quando, então, a narrativa é fundamento essencial de distinção.

A dramaturgia contemporânea tem trazido de volta à cena a palavra narrada, seja pela valorização do narrador - personagem ou em off - seja pela fala em primeira pessoa a contar fatos e sentimentos em vez de encená-los por ações.

O deslocamento da ação para a fala que se faz então como única ação resulta na abordagem de uma cena que compreende o intérprete como imagem narrativa por sua capacidade real em ocupar o palco. Ou seja, o corpo do ator por si só é antes instrumento de elaboração estética da cena.

Tal conflito conceitual pode ser enxergado claramente em "Curto Circuito", de Fernando Bonassi. O escritor-dramaturgo possui a característica de associar palavras e conceitos durante o correr do texto que lembra, em certo sentido, o ritmo da escrita automática surrealista.

O ritmo em si se mostra justamente na coerência associativa (e não no aleatório do sistema surreal), em como Bonassi utiliza a seqüencialidade de frases, com seus antônimos descritivos de estados e condições, para que os universos de suas personagens literárias e dramáticas se configurem dentro de situações determinadas, quase sempre voltadas a entender os mecanismos sóciopolíticos de diferenciação e exclusão entre os iguais, sobretudo o indivíduo urbano.

Em "Curto Circuito", o escritor se aventura também à direção. Aparentemente, tudo justifica essa incursão para dentro das coxias. Afinal, ninguém melhor que o próprio escritor para destrinchar as palavras a serem ditas.

No entanto, a cena se revela frágil sobre o palco. Pouco vai além dos artifícios cênicos habituais na busca por ilustrar um pensamento. O que é pouco. Na disputa entre escritor e diretor, Bonassi não consegue se livrar da caneta e acaba por diminuir as possibilidades de apropriação e desconstrução do texto em si.

A falta de diálogo entre as duas linguagens faz com que o texto de Bonassi surja no palco feito crônica limitada a apresentação dentro de um contexto construído que, nesse caso, explicita a fragilidade no tratar a linguagem teatral ao metaforizar em cena um espaço cenográfico que nos remete de imediato a outro palco.

"Curto Circuito" entra em curto ao se apegar aos modelos tradicionais de interpretação, fortalecendo o tom cronista da linguagem textual, resultando em um espetáculo mais próximo ao recital de crônicas que se sucedem dialogando e variando sobre um tema-chave, do que propriamente com a linguagem do teatro.