VERÔNICA CORDEIRO: a arte como possibilidade de ser o outro
21 de maio. A Prefeitura de São Paulo, em um ato de extrema coragem, mantém as festividades da Virada Cultural 2006. Não se rendeu a Cultura aos ataques e assassinatos. E fez-se bem em agir assim. A imprensa e órgãos oficiais falam em 1,5 milhão de pessoas circulando pelos mais diversos pontos da cidade, em todas as direções, ocupados com atrações de teatro, música, dança, literatura, encontros. A população da megalópole responde aos criminosos no que haveria simbolicamente de mais agressivo: o prazer, a diversão, a alegria.
Verônica Cordeiro, artista plástica, envia-me dias antes um convite: sairmos às ruas. Confesso que não estava à vontade para caminhar durante a madrugada após o que vi pela televisão... Mas o convite propunha irmos além. Não apenas circular pelas avenidas ou participar dos shows. Vestidos por parangolés criados pela artista na reunião de materiais como embalagens, plásticos, tecidos e manchetes dos jornais dos últimos acontecimentos. Cerca de vinte pessoas. Passeata inesperada ao sabor incomum de uma gaita, um saxofone, um clarinete e um violão acrescentado por um anônimo.
Bastaria pelo inusitado, no ofício da artista de compor ali, na junção estranha de cortejo urbano e protesto conceitual, elementos suficientes para argumentar o bloco. Crítica à arte enclausurada das galerias e museus. Crítica aos artistas submersos a um sistema mercadológico. Crítica à violência. Crítica ao abandono da cidade. Trace qualquer possibilidade de leitura, ainda assim havia algo maior em tudo aquilo.
Contudo, faltava definir o elemento principal: o público; sem o qual o manifesto não se concretizaria. E então Verônica vai além... Ao contrário do óbvio e da procura pelo reconhecimento, o percurso não era pelos locais das multidões, dos shows, teatros. Entre 19h e 23h, caminhamos por avenidas sem atrações, por ruas e vielas conhecidas por serem pontos de tráfico de drogas, de contrabando, prostituição, violência. Sem policiamento, segurança ou preparação.
Avenida Paulista, Trianon, 9 de Julho, Praça 14 Bis, Paim, Viaduto Julio Mesquita Filho, Rua Augusta, Praça Roosevelt, Nestor Pestana, Ipiranga, Praça da República, Rua Aurora, São João, Rio Branco, Santa Ifigênia, Jardim da Luz, Pinacoteca. E o festejo feito em silêncio e euforia caminhando por dentre o público surpreso do museu.
Não sei quantos quilômetros deram, ou quantas música foram tocadas, e paradas para ir ao banheiro em restaurantes e postos de gasolinas. Não sei quantas pessoas pararam para nos olhar, ou que acenaram de suas janelas, ou mesmo as que se aproximaram para entender o que pretendíamos. Nesses momentos, crianças e adultos tinham a mesma expressão curiosa. Casais e solitários. E mendigos. E bêbados. E carroceiros, catadores-de-papel, de lixo. Do lixo que tornávamos pele. A nossa cidade!
Verônica parava para cada uma dessas pessoas. Conversava, tocava-as, explicava arte enquanto descobríamos a mais profunda realidade. Aos moradores de rua, parangolés eram carinhosamente oferecidos. Para alguns, a loucura satisfeita ao se ver vestido em delírio de tecido e jornal. Para outros, a lágrima descontrolada do sentir afago, proteção e ter os olhos encarados sem medo ou piedade. Estávamos em festa. Juntos, iguais. Sabíamos disso. Sabiam eles também. Ao fim, restavam-nos pouco mais do que os desenhos de corpos sujos, maltratados, maltrapilhos, vestidos como nós (e nós como eles) sumindo nas ruas silenciosas, escuras, abandonadas.
Se Verônica conseguiu transmitir a essas pessoas a importância da arte, nunca saberemos. Mas duas são minhas certezas: a de que eu, enfim, compreendi; e a de que, em algum lugar dessa cidade, deve haver um homem dormindo no chão, vestido com jornais, sonhando, com um sorriso livre, repleto de esperança e, acima de tudo, em paz. Ainda que tudo não passe de um pouco de sonho...
Obrigado Verônica por você ser como é.
Verônica Cordeiro, artista plástica, envia-me dias antes um convite: sairmos às ruas. Confesso que não estava à vontade para caminhar durante a madrugada após o que vi pela televisão... Mas o convite propunha irmos além. Não apenas circular pelas avenidas ou participar dos shows. Vestidos por parangolés criados pela artista na reunião de materiais como embalagens, plásticos, tecidos e manchetes dos jornais dos últimos acontecimentos. Cerca de vinte pessoas. Passeata inesperada ao sabor incomum de uma gaita, um saxofone, um clarinete e um violão acrescentado por um anônimo.
Bastaria pelo inusitado, no ofício da artista de compor ali, na junção estranha de cortejo urbano e protesto conceitual, elementos suficientes para argumentar o bloco. Crítica à arte enclausurada das galerias e museus. Crítica aos artistas submersos a um sistema mercadológico. Crítica à violência. Crítica ao abandono da cidade. Trace qualquer possibilidade de leitura, ainda assim havia algo maior em tudo aquilo.
Contudo, faltava definir o elemento principal: o público; sem o qual o manifesto não se concretizaria. E então Verônica vai além... Ao contrário do óbvio e da procura pelo reconhecimento, o percurso não era pelos locais das multidões, dos shows, teatros. Entre 19h e 23h, caminhamos por avenidas sem atrações, por ruas e vielas conhecidas por serem pontos de tráfico de drogas, de contrabando, prostituição, violência. Sem policiamento, segurança ou preparação.
Avenida Paulista, Trianon, 9 de Julho, Praça 14 Bis, Paim, Viaduto Julio Mesquita Filho, Rua Augusta, Praça Roosevelt, Nestor Pestana, Ipiranga, Praça da República, Rua Aurora, São João, Rio Branco, Santa Ifigênia, Jardim da Luz, Pinacoteca. E o festejo feito em silêncio e euforia caminhando por dentre o público surpreso do museu.
Não sei quantos quilômetros deram, ou quantas música foram tocadas, e paradas para ir ao banheiro em restaurantes e postos de gasolinas. Não sei quantas pessoas pararam para nos olhar, ou que acenaram de suas janelas, ou mesmo as que se aproximaram para entender o que pretendíamos. Nesses momentos, crianças e adultos tinham a mesma expressão curiosa. Casais e solitários. E mendigos. E bêbados. E carroceiros, catadores-de-papel, de lixo. Do lixo que tornávamos pele. A nossa cidade!
Verônica parava para cada uma dessas pessoas. Conversava, tocava-as, explicava arte enquanto descobríamos a mais profunda realidade. Aos moradores de rua, parangolés eram carinhosamente oferecidos. Para alguns, a loucura satisfeita ao se ver vestido em delírio de tecido e jornal. Para outros, a lágrima descontrolada do sentir afago, proteção e ter os olhos encarados sem medo ou piedade. Estávamos em festa. Juntos, iguais. Sabíamos disso. Sabiam eles também. Ao fim, restavam-nos pouco mais do que os desenhos de corpos sujos, maltratados, maltrapilhos, vestidos como nós (e nós como eles) sumindo nas ruas silenciosas, escuras, abandonadas.
Se Verônica conseguiu transmitir a essas pessoas a importância da arte, nunca saberemos. Mas duas são minhas certezas: a de que eu, enfim, compreendi; e a de que, em algum lugar dessa cidade, deve haver um homem dormindo no chão, vestido com jornais, sonhando, com um sorriso livre, repleto de esperança e, acima de tudo, em paz. Ainda que tudo não passe de um pouco de sonho...
Obrigado Verônica por você ser como é.
3 Comments:
Lindo Ruy, me emocionei às lágrimas. E o bom é q arte é muito mais q diversão, com a comida a gente fica em pé, com a arte a gente vive,
abraço
By Anônimo, at 12:19 PM
Ruy,
Que lindo texto. Eu queria ter ido junto.
Beijos,
Paula.
By Anônimo, at 7:23 PM
Ruy, é tão estranho perceber que a soicedade não age...Me pergunto quando será que isso se repetirá. Espero que nunca. Mais não acredito nas chamadas autoridades
By Anônimo, at 7:24 PM
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