A SOUVENIRIZAÇÃO DA HISTÓRIA
Sou de um tempo recentemente antigo, de quando as fotografias levavam semanas para serem reveladas e apreciadas. Cada imagem exigia a certeza de um desejo, a projeção de uma expectativa espelhada à construção da memória que haveria de ficar e perpetuar a experiência. Sou de um tempo quando a elaboração do passado tinha em vista sua capacidade de planejar como as lembranças deveriam ser subjetivadas, como a história poderia ser recriada para o momento em que os fatos estivessem limitados às imagens materializadas em instantâneos. Hoje, a participação na história desvincula-se tanto do desejo quanto do espelhamento do sujeito. Perdemos nesse breve meio de tempo a capacidade em observar o todo após sua conclusão, educados que fomos pelos descartáveis e moldes identitários controlados. Distanciamo-nos cada vez mais da tentativa de pertencer à história que não através de um breve comentário da mesma sem qualquer vínculo emocional. O tempo, como fundamento de consolidação narrativa onde nos incluímos em iguais, estrebucha vandalizado pela imprudência de nosso isolamento, nossa limitação ao fazer imediato, o agora, e nos carrega ao desencontro de uma subjetividade maior pertinente e conseqüencial.
Olhar o tempo como manifestação sobre o sujeito exige certa abstração e concentração sobre fundamentos que, aparentemente, contrariam a normalidade de seu entendimento comum, afinal a mecânica do relógio dependurado na parede parece nos provar que o tempo tem sim sua concretude e discuti-la seria uma enorme ‘perda de tempo’. Mas se encararmos por outra perspectiva, pelo viés do sujeito, chegaremos ao impasse ‘manifestação’ versus ‘percepção’. Quando notado o tempo, este não pode mais ser o mesmo, já que a própria ação de perceber está limitada à consciência de sua percepção, e isso leva milésimos de uma fração. Desde a luz refletida sobre o objeto, seu reflexo na retina, a transposição para imagem em nosso cérebro e seu reconhecimento, tudo leva tempo, ainda que seja a tal fração. Percebemos algo porque compreendemos e deciframos aquilo que constitui o signo, ou seja, sua informação. Portanto o que percebemos é o passado da informação em si e nunca ela em seu tempo presente. Feito estrelas que observamos e cujo brilho reflete o seu ontem, podendo chegar a expor sua existência quando na verdade não mais existem. Entretanto, o que seria a existência, então, a materialidade presencial ou a manifestação reconhecida? Do que importa algo que não se manifesta? E do que serve um reconhecimento de algo inexistente? A existência em si está na dimensão temporal que se dá ao objeto. Ao reconhecer nele a própria manifestação do tempo, ele só pode ser propriamente real, ainda que a virtualização dessa realidade dobre o tempo sobre ele mesmo. E esse tempo da dimensão cósmica, alargado pelas distâncias, pode igualmente ser transposto como o tempo de nossa consciência frente à informação em si. Devemos então compreender o passado como único alicerce concreto de realidade e dividir a escala temporal tal como a convencionamos – passado, presente e futuro – em passado histórico, revelação do passado e desejo de passado, respectivamente.
No passado histórico, mais próximo ao que conhecemos por passado, reconhecemos tudo aquilo que foi, teve, serviu, existiu, fez-se por fatos, sensações e emoções de toda ordem compondo a narrativa de nossa subjetividade como que vista independentemente de nós mesmo, algo entre aquilo que nos constituiu até o agora e que também pode ser encontrado e reconhecido sem nossa presença no amanhã. Podemos narrar nosso passado e seus detalhes turvos, traze-lo concreto em nós em marcas e mudanças, assim como guarda-lo num diário distante de qualquer outra função. Esse acúmulo de ontem roteiriza a trajetória compondo um panorama sistemático organizado de participação na história universal - mais ampla e formada pelas narrativas individuais e seus encontros e desencontros culturais, sociais, econômicos, religiosos, políticos. Já a revelação do passado, faz-se pela presentificação daquilo que será o passado histórico, quando a percepção se dá e se revela real e ultrapassada concomitantemente, conforme os exemplos sobre as estrelas ou o reconhecimento das informações. Por último resta-nos entender o que chamamos por futuro. Quando imaginamos o tempo, o futuro, o fazemos através de idealizações positivas ou negativas, através de projeções de nossos desejos. Tudo aquilo que imaginamos para o amanhã está intrinsecamente ligado às expectativas, racionais e subjetivas que formulam possibilidades de realizações, tendo por iniciativa a resolução ou compreensão de uma inquietação. É ela, a inquietação, a força motriz que leva nossa imaginação a desejar, antecipar os acontecimentos projetando possibilidades. Entretanto, a percepção dessas projeções ocorre na visualização de fatos concretos representados quase sempre por ações e acontecimentos reconhecíveis por nossa subjetividade, afinal elas são frutos e variações limitadas ao repertório de nossa subjetividade. Somos incapazes de imaginar o futuro como futuro. O futuro sempre se revela como acontecimento presente. Ou seja, limitamo-nos à criação idealizada a partir do suposto encontro vivencial com a mesma. O futuro, então, manifestação que é dessa busca pelo amanhã, deve, enfim, ser entendido como sendo o desejo de passado, o desejar representado durante a revelação do passado idealizado por nossas inquietações.
Determinante sobre a maneira como construímos nossa existência, o passado das fotografias de ontem, da lembrança escolhida e central, tem sido substituído pela urgência do ideal. Não mais do ideal narrativo, mas o estético, aquele que socialmente compreende-se por ideal dentro dos modismos e idiossincrasias de cada época. Se outrora o gesto fotográfico era a pertinência de uma escolha, hoje imediatamente voltamo-nos às telas das máquinas fotográficas digitais para reconhecer a expectativa da experiência fotografada. Se a imagem não corresponde ao que se pretende recordar, apaga-se, substituindo-a por outra segundos depois. Um sorriso torto, um enquadramento desequilibrado, a cor mal traduzida, um desequilíbrio da ordem pressuposta qualquer. A maquinização do desejo substitui a verdade do congelamento do instante por sua construção falseada, tanto quanto eram as primeiras fotografias e a necessidade técnica em se manter estático por tempos longos os suficientes para retirar do gesto qualquer espontaneidade. Contudo, não se trata mais de uma necessidade técnica e sim da idealização que busca dialogar com um anseio público sobre o produto. É o ‘como quero me lembrar disso’ ou daquilo ou você ou de si mesmo. Basta ver que a grande questão agora não é mais a foto em si, mas o reconhecer-se nela, o natural “deixa eu ver...” que faz com que o fotógrafo restaure imediatamente aquilo que deveria recuperar uma memória e que agora mais se mostra sua construção.
Se por um lado perdemos a relação com a história e nossa participação na formação de sua narrativa, por outro encontramos subterfúgios emblemáticos alternativos que nos ligam à importância social dessa participatividade: a souvenirização. A miniatura de uma Torre Eifell tem a propriedade de nos remeter à existência concreta da construção instalada em Paris, e se comprada na cidade original (ainda que quase sempre esses artefatos sejam de fabricação chinesa) o mimo ganha valores emotivos mais pertinentes ao seu consumo. A torre, esquecida na prateleira da sala, está lá para nos relembrar o impacto real, traduz aos terceiros o encontro em si e dá existência e contexto às memórias. O souvenir, a lembrancinha que amigos e parentes exigem, distribui aos ausentes partes dessa vivência, torna-os cúmplices daquilo que não viveram. Essa tentativa de trazer consigo um pouco do que sentiu e viveu, traduzindo-o numa pequena mostra real do passado, seja uma foto ou uma miniatura qualquer, ampliou-se com a perspectiva do afastamento do sujeito e sua responsabilidade com a história. Antes o viajante visitava os monumentos por querer mais do que encontrar o próprio, mas tudo aquilo que o tornara indispensável na narrativa da humanidade. Hoje, a estetização da importância histórica faz com que o encontro ocorra na superficialidade do encontro estético, ainda que qualquer “encontro” em si seja já a amplificação perceptiva do sujeito. A questão complica-se no momento em que a história passa a ser consumida como sinônimo de participação. Então compro um pedaço do muro em Berlim, mas sem qualquer saber de sua significância histórica (com ele e sem ele). Aquele pedacinho pintado de muro, que bem pode ser de qualquer muro e época, torna o portador cúmplice daquele momento. Contudo, igualmente falso ao sorriso forçado em fotografia refeita para ser relembrada como felicidade em algo que não teve. A souvenirização da história traduz o indivíduo como reconhecedor de certa importância. Porém, a tal importância não está mais na participação da construção em si, mas no reconhecer aquilo que o passado revelou como sendo importante para sua existência.
A souvenirização contextual dos acontecimentos está na naturalidade em que cada igreja, monumento, acontecimento político e cultural, espaço de história, localização de passado consagrado à relevância de permanência, cada canto possui seu free shopping, sua bancada de produtos, suas prateleiras de miniaturas e reproduções estetizadas em brindes de toda sorte. Não há um local histórico que não tenha se tornado turístico, e não há um local turístico que não tenha desenvolvido sistemas de capitalização de sua história.
Voltamos às questões trazidas anteriormente: “o que seria a existência, então, a materialidade presencial ou a manifestação reconhecida? Do que importa algo que não se manifesta? E do que serve um reconhecimento de algo inexistente?”. A souvenirização da história expurga a problemática pelo que há de mais cruel: a existência do sujeito como fabricação de um Sujeito inferior à própria necessidade de existência. Explico. O homem manifesta sua participação na aceitação daquilo que se traduziu por necessário e não mais pela necessidade em si, e nessa participação falseada, encontra a si mesmo como fundamental naquilo onde ele mesmo não se vê. E por que reconhecer-se em algo assim? Para que sua própria existência seja maior, vá além da superficialidade do comum. Em cada pedacinho de muro, lasca de cruz, miniatura e coisas do tipo, o que o homem busca é o reconhecimento de si mesmo, a simetria com o outro, o reencontro com sua espécie. Nossa falsa participação nos afasta da história real e nos acresce à oficial, portanto nos faz existir como se pretende que seja uma correta existência, e enquanto não retornarmos ao hoje, ao agora, ao verdadeiro encontro com a revelação do passado em seu tempo de construção, a dominação do passado histórico como fundamento de formação de nossa subjetividade e responsabilidade há de nos tornar meros coadjuvantes de nossas próprias realidades. E sem o encontro verdadeiro, não há como adquirir instrumentos para formar o vocabulário necessário ao desejo de passado, o que nos limita a capacidade de desejar somente aquilo que nos fora dito ser possível. Em resumo, distantes, portanto, da possibilidade de sermos criadores da história a vir. Por hora, restarão as prateleiras repletas de mimosas lembranças daquilo que nunca viveremos mais...
2 Comments:
Isso sem que toquemos na comparação de "Você na história" com "a História em você".
Me lembra a herança política pouco política dos atuais como eu.
No lado pessoal, sorrisos espontâneos, poses, biquinhos para o rosto ficar mais magro na foto. Mas se nossa memória anda cada vez mais curta, talvez seja válido forjar o presente para construir um digno passado num outro futuro, não?
Não?
Cara, você tem assistido muito LOST?!
By Claucio, at 11:52 PM
risos... Claucio, até assisto Lost, mas perco um aqui e outro ali. Quanto a construção digna de outro passado, vc está certíssimo. Só resta entender o que é o DIGNO nos dias de hoje.
Abraços
By Ruy Filho, at 12:10 AM
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