Antro Particular

04 setembro 2010

A favor da bienal de sp, seja como for

Há muito preconceito sobre o fracasso. Como se perder, ser vencido, não alcançar, desistir, determinassem mais do que uma ocorrência, fosse determinante à própria constituição do sujeito, na amplitude e convergência daquilo que forma seu caráter e, em última instância, sua humanidade. A expiação de haver entre os homens graus de relevância não chega a ser novidade. Desde a necessidade de sobrepor força à sobrevivência até o poder administrado por diferenciais intelectuais e culturais, o homem se vê aprisionado à esfera daquilo que é capaz de demonstrar. Com o tempo, a demonstração deixou de ser suficiente e a representação tornou-se o valor de singularização. Representar algo, ser representante, portanto, determinou ao homem a perspectiva de sua manifestação política sobre sua comunidade, quando suas convicções e as certezas de suas escolhas, frente ao bem-comum, revelaram-no especial e necessário. Há, já aí, uma distância fundamental na reelaboração do homem que deixa de ser alguém por si para ser alguém que seja o todo.

Se, antes, o homem que se impunha por si, de alguma maneira, mantinha tangenciado às suas necessidades e conquistas aqueles quais sobrepusera, como princípio de agregação e responsabilidade para com os outros, o alguém que representa o todo precisa da existência do sistema tangencial para se fazer representante, afinal, só é possível representar algo se admitida a existência deste como existência própria e anterior ao próprio representante. A dimensão antropológica que constituía a presença do sujeito em comunidade passa à dimensão política, onde o sujeito está, na realidade, anterior ao próprio homem, substantivado, enquanto o homem se mantém conseqüência à comunidade.

Igualmente, o fracasso - manifestação do desejo não concretizado - sofre igual transformação. Antes, o fracasso perante o outro, condicionava o sujeito a uma recolocação dentro da estrutura comum, cabendo-lhe reentender sua função e participação no universo pertencente ao comum. Posteriormente, o fracasso, ao ser aproximado à construção política do homem, implica, necessariamente, ao seu não pertencimento e participação. O novo fracasso, melhor dizendo, o fracasso moderno, mais do que identificar o perdedor, anula-o como sujeito, construindo-o sob os paradigmas da inutilidade, limitado ao servir o vitorioso de modo a manter, pragmaticamente, sua vitória incontestável. Ou seja, o fracasso moderno aprisiona e escraviza ideologicamente o sujeito que o sofrera sem que haja grandes possibilidades de reverter o fracasso ou superá-lo em uma próxima investida.

Se fracassar antes era determinar-se limitado, no mundo moderno aprisiona e explora, por isso a incessante busca pela vitória, pelo ganho, pelo reconhecimento. Nasce aí toda uma cadeira de indústrias periféricas para oferecer ao homem moderno possibilidades de não fracassar: da educação objetivada em "conteúdo igual a resultado", do emprego com perspectivas evolutivas, das afetividades transitórias e substitutivas. A sociedade, e não mais a comunidade mas a completude de comunidades que a compõe, introduz o fracasso como eminência destrutiva do ser, e não mais o fracasso como naturalidade de possibilidade.

Da modernidade aos nossos dias, o fracasso sofrera outra transformação. A dita pós-modernidade parte para outra observação do sujeito, onde não mais importa o valor de demonstrar e/ou representar, mas, sobretudo, o de produzir. Da capacidade em produzir economicamente à de gerar relações afetivas, sociais, culturais e políticas, o homem se encontra sob o paradigma do fracasso inevitável, enquanto insiste, pelo preceito anterior, que o fazer é suficiente para sobrepujar o fracasso eminente. O fracasso pós-moderno amplifica o sentimento de inutilidade, o valor anulador sobre a compreensão existencial do sujeito. Agora, improdutível, passa a representar valores negativos para o todo, portanto, ao fracassado, resta o isolamento. Todavia, a disparidade entre a compreensão do fracasso e do sucesso, hoje, deforma a objetividade do que essencializam os dois pólos, e, ambos os extremos, passam a co-existir como potências reais, e não como conseqüências do existir. E onde residem os fracassados, grande maioria entre nós, agora improdutíveis e inúteis? Na enorme massa de consumidores, cujo existir serve à manutenção do sistema que fortalece o favoritismo dos vitoriosos.

Reagir a isso determinaria ao sujeito expor seu fracasso como forma de aceitar sua situação. Manter-se, entretanto, submetido, silencioso e passivo assemelha o sujeito ao outro, surgindo daí uma cumplicidade velada, onde a nova casta nega seu fracasso, preferindo se verem comuns. Fracassado, portanto, verdadeiramente, é aquele capaz de se dizer falível, incapaz, infeliz. Com o paradoxo de ser possível somente ao assumidamente fracassado modificar sua situação, enquanto ao passivo a permanência em seu estado de letargia é fundamental à manutenção de sua felicidade. Esse existir passivo termina por mediocrizar o homem, torna-o mediano, localiza-o dentre o fracassado e o vitorioso, enquanto o redesenha nebuloso e correto. E é esse o ponto maior de irresponsabilidade que se pode atingir: ser meramente correto. Sem qualquer outra função na construção da história, o homem correto abstém de sua presença singular no presente para assisti-lo definido pelos dois extremos: o vitorioso que conduz o sistema aos padrões determinados e organiza a ordem comum; o fracassado, cujo empenho frustrado movimenta a ordem aleatoriamente, introduzindo inquietações às certezas que, aos poucos, levam os vitoriosos a outras possibilidades de atuação. Ao fim, cabe ao fracassado determinar de fato o que justificarão os vitoriosos de amanhã. É a tentativa função de equilíbrio do existir em sua capacidade elástica sob a história, enquanto o resultante, o fracasso propriamente, redimensiona valores e objetivos a partir de respostas concretas espelhadas.

A sociedade, tal qual, é, insiste em expurgar o fracasso de seu imaginário. E, na ambiência cultural, essa observação mantém-se fiel à regra. Qual artista gosta de fracassar? Mas não deveria ser da arte a pertinência do experimento? E todo e qualquer experimento, ao se valer de discursos e estratégias não cifradas, não se pilariza, principalmente, na perspectiva do erro? O erro, o errar, todavia, é, antes de uma resposta social ao artista, promessa e descoberta em processo. Talvez seja por isso, então, que a arte brasileira esteja em um momento tão desinteressante, correta, mediana. A ausência de experimentos/inquietações é proporcional à necessidade de reconhecimento/acertos. Exemplos diretos atuais são as escolhas das premiações e editais, cada vez mais em busca de "acertos", subestimando o acerto por avaliações quantitativas e mercantis.

Enquanto o homem servia a demonstrar, a arte existia em sua necessidade e finalidade. Depois, ao ser representativo, a arte discursara seus valores em modismos e vontades definidas. Agora, o homem producente, faz da arte artefato de resultado produzido para nenhum fim. Época perfeita para a arte, então, se livrar da servidão, e para que possa, enfim, encontrar sua existência como atribuição independente na sociedade. Enquanto isso não ocorre, enquanto o artista não se vale de sua liberdade em errar, experimentar e redesenhar o amanhã em possibilidades impensadas pelos artifícios próprios da ordem reinante, resta esperar e manter viva a necessidade que faz com que as exceções fracassem diariamente. Paciência. Há muito vitorioso por aí que pouco ou quase nada significa. Há também fracassos cuja pertinência de seus fracassos um dia poderão ser a base do comum. A arte é assim, os artistas, sempre incógnitas. E em breve chegarão às centenas para a Bienal Internacional de Artes. Seja lá o que tiver de ser...

4 Comments:

  • Ver fomento e prêmio ao que é mercatil e "pop" desanima, entristece, mas não me faz desistir da minha busca pessoal, no egoísmo da minha felicidade... incentivada, ou não externamente, mas motivada por uma necessidade maior e inexplicável que vem de dentro.

    By Blogger CL, at 11:56 AM  

  • Esse texto fenomenal me ajuda a recordar que não adianta fugir, ou ser diferente, ou negar aquilo que supostamente "reina" na sociedade, porque não há uma saída.
    Ou se deixa governar espiritualmente, deixando-se contaminar por todas as opiniões e posições dos outros, consequentemente, deixando de existir, ou se encara o fato de que somos sós, e de que é preciso estar só.
    Ser só estando com o todo, o que significa aceitar o fato de sermos sozinhos em nossos "espíritos", não em solidão e sim em solitude.

    Textos incríveis, parabéns.

    By Blogger Vanesuille, at 12:41 AM  

  • caren, talvez essa seja a resposta maior, continuar sempre, incentivada ou não, entendendo por incentivo todo e qualquer estímulo ao continuismo.

    beijos, querida.

    By Blogger Ruy Filho, at 3:52 AM  

  • obrigado, vanesuille. apareça sempre.
    beijos

    By Blogger Ruy Filho, at 3:54 AM  

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