DIVINAS PALAVRAS: o inferno divino dos Satyros

Tão quanto barroca, as personas se revelam múltiplas e versáteis, apresentando o Homem em sua capacidade mais primitiva de adaptação pela sobrevivência. E não cabe aqui apenas o sentido biológico do existir, mas, sobretudo, a facilidade no desvencilhar de quaisquer fundamentos morais em nome da melhor opção. Nesse caso, mais do que nunca, o poder de existir sobre os demais.
Ivam Cabral interpreta deliciosamente Lauriano, deficiente físico e mental, disputado por todos por sua capacidade de traduzir a piedade alheia em renda. O benefício fácil da exploração caracteriza mais do que o mero ato. Exibe a condição que vivenciamos tão claramente por aqui, nos trópicos, de chafurdar em restos. Nada é mais representativo da situação atual que a figura paralítica e imbecilizada de Lauriano. E em Divinas Palavras, Ivam traduz mais a apatia do nosso comodismo do que em qualquer outro personagem já por ele feito.
Lauriano expõe as transformações sofridas pelo Homem pós-Guerra: a perda da identificação do coletivo simultânea a incontrolável capacidade de capitalizar seja lá o que for. No mundo moderno aprendemos a valorizar o lucro acima de tudo; abandonamos o desejo pela compra fácil e transitória do prazer, capitalizamos as emoções em respostas quantitativas aos interesses imediatos e superficiais do modismo; esquecemo-nos de imaterializar as relações e as conseqüências de nossas vontades.
Divinas Palavras reconduz a áurea negra das pinturas de Goya para o contemporâneo recriando-a nos infernos de Bosch. Um encontro entre o medievalismo do pavor místico e a monstruosidade humanitária. Agora, o pavor místico se confronta pela capitalização do sentir. Agora, a monstruosidade se revela na pequenez da existência sem valor. Mas de maneira a contribuir na poesia do silêncio de Lauriano a pureza submersa entre os destroços, como um fio frágil de esperança esquecido amarrado em qualquer lugar da história, pronto para ser recuperado.
Mais uma vez, Os Satyros incomodam a burguesia latente nas morais contemporâneas, impondo ao público o suplício de se admitir desagradável. Caminhar pelas esferas do fazer produtificado, conforme as imbecilidades do mercado, seria destruir o que de mais saboroso há nos Satyros: o risco corajoso do incômodo. Em seus palcos é preciso reconhecer a importância de reencontrar o que ainda há de humano em nós, ainda que isso só seja possível pela falta de bons adjetivos.
4 Comments:
Primitivo... nunca lembro essa palavra exatamente, fico só sentindo, sem saber ou lembrar, "primitivo"!
Que texto Sr. Ruy, me levará ao teatro. Quase milagre.
Todo respeito e um beijo,
Kiki.
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Anônimo, at 8:04 AM
...você esta começando a ficar poético nas críticas...
acabei de ter uma idéia...vou começar a criticar as suas críticas...ehehe...vou ficar rico!!!
beijo
Pancho
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PANCHO CAPPELETTI, at 9:27 PM
salve ruy, valeu a pilecada no boteco. puxei seu texto por que é tão difícil gostar de teatro para o meu blog. abração
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Anônimo, at 5:56 PM
Oi Ruy,
estarei no Festival de Teatro de Curitiba e gostaria de te enviar o meterial por e-mail. Pode me fornacê-lo?
Atenciosamente,
Antonio Mello
T.E.A.T.R.O.C.O.N.T.E.M.P.O.R.Â.N.E O
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TRAMAVIRTUAL, at 9:11 PM
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