Antro Particular

21 dezembro 2009

LUZES CONGELADAS

É impossível não ser surpreendido por um olhar diferente para situações repetidamente cotidianas quando estamos fora de casa, longe da própria cultura. Circulando por aí sempre me deparo com o óbvio recriado, relido, mais pela perspectiva do meu olhar flauner do que da novidade em si, e me pego questionando como nunca havia percebido a situação por tal perspectiva. É preciso algo provocador que represente o comum, ou melhor reapresente, para construir o estímulo necessário para que a subjetividade releia-o descondicionado das interpretações consolidadas e viciadas. Foi em uma dessas andanças, ao gélido frio que avança para além de um dígito negativo, que entramos, Patrícia e eu, na catedral Dom em Berlim. Entre turistar e descobrir, o anúncio de que mais à noite haveria ali um concerto clássico com intervenções textuais de Brecht entre outros. Voltamos ao horário devido. Como não falo absolutamente nada em alemão as intervenções textuais que arrancavam risos constrangidos da platéia e aplausos entusiasmados com o que parecia ser ousadia pela escolha de temas e local tornaram-se estruturas sonoras quase performáticas. Entre uma e outra as músicas surgiam alento à percepção e recuperavam pistas de como a subjetividade proposta deveria ser narrativamente absorvida. O movimento então se formara na irregularidade do som-orquestra e som-abstração. E foi na passagem desses intervalos que algo provocou o comum de maneira peculiar: atrás dos músicos e orador, o altar compunha-se de imensos candelabros e velas menores preenchidos em seu meio por uma crucificação de Cristo em mármore branco de tamanho razoável aos olhos distantes. O que deixara de ser comum fora a notabilidade da substituição das velas reais por velas elétricas, da cera ou parafina por cabos e lâmpadas, da luz irregular para a rígida. Cristo continuava ali, com os fiéis, agora público, distribuídos frontalmente ao altar principal. Por todo o teto e capelas secundárias os candelabros suspensos ou não distribuíam a artificialidade da luz eletrificada das lâmpadas-velas.

A igreja católica construiu pela luz três condições básicas para a manipulação da subjetividade do frequentador: a sombreada gótica, a ilustrativa renascentista e a labiríntica barroca. Na primeira o fiel é conduzido ao obscuro inatingível dos mistérios através de uma arquitetura longilínea cujo ápice direciona-o ao céu por estruturas pontiagudas que transferem o olhar ao infinito, como se a união deste com o chão fosse natural tendo a igreja por intermediação óbvia. É na catedral gótica que a iluminação corrige de maneira íntima a realidade para que esta se pareça à atingível pelos olhos do divino. Se do lado de fora, a rua profana, o sujeito observa o infinito ser tocado pelas pontas das torres como se fossem elas capazes de leva-lo ao encontro do azul celestial, do lado de dentro os vitrais organizam o centro da nave como se esta fosse de fato o mais próximo de deus, enquanto as laterais sugerem a intersecção entre o profano e o sublime, o pecado e a redenção, por relevos com tais temas e a construção de narrativas que, aliadas à baixa luz, traduzem ao fiel a importância da fé, do encontro centralizado e justo, da aceitação do divino. Já no renascimento, a organização das linhas retas e a estruturação do espaço pela quadratura e introduções circulares precisam a circulação e organização dos presentes. O universo retilíneo, paralelo, sistemático, cientificista, amplifica o artista matemático-cientista evidenciando a centralização do universo no próprio homem e não mais no invisível. Surge o ponto de vista, quando o fiel deixa de ser mero elemento dentro de um contexto anulador do si para ser referencialmente o ponto de centralização da percepção do entorno. Agora o fiel é sujeito da observação, o que conduz à necessidade de alcançar estruturas subjetivas diferentes que dêem conta de incluí-lo de maneira fundamental e traze-lo ao sublime por outros vieses que não mais o desconhecido traduzido pela presença da instituição. A catedral renascentista absorve o homem para si, enfatiza Cristo personagem e dá ao fiel a condição de diálogo com o invisível. Banhada por vitrais matematicamente disponíveis, conduz a luz de maneira a brilhar todo o interior do edifício, em menores e maiores exposições, e pela grandiloqüência de sua capacidade intelectual implica à capacidade humana contribuições divinas. A geometria, a simetria, a perfeita projeção de cores e desenhos, a localização precisa, a perspectiva elaborada no caminhar dos desenhos e a condição de acomodamento do fiel fazem da catedral renascentista uma obra divina por mãos abençoadas, entendendo por abençoado todo aquele escolhido, e por escolhido todo aquele que antes da escolha pertencia ao vulgar. Portanto, enquanto a luz gótica conduzia o fiel ao encontrar o divino na aceitação de sua limitação pecadora, a renascentista conduzia-o pela tradução do próprio homem como instrumento possível de manifestação do divino. Por último, e não menos importante, a luz labiríntica do barroco surge na necessidade de limitar a compreensão da distinção entre deus e o homem surgida no renascimento. Confusa, provocativa, nebulosa, circular, excessiva, a catedral barroca teatraliza o divino disfarçando sua manifestação através de um ambiente agressivo à subjetividade do observador e surpreendente ao fiel. A opulência estética desvia o sujeito de volta ao patamar menor de sua existência e precisa o divino na violência de sua dominação sobre o homem, sobre a vida. É preciso restabelecer o medo do pecar mais do que a percepção do pecado ou o divino no humano. É preciso reativar a insegurança das conseqüências das escolhas para impor novamente a igreja como intermediação fundamental. É ela quem detém a palavra maior e, portanto, determina o certo e o errado. Cabe a ela, e somente a ela, a apresentação do julgamento de Deus. O labirinto de claros e escuros diviniza o espaço aproximando-o mais das trevas do que do céu. A exploração da luz indireta advinda do reflexo do ouro traz ao fiel a violência de uma força que agora se revela inexplicável, intraduzível, limitada à aceitação de sua onipresença. Essa teatralização do divino impõe o medo óbvio do incomum então tornado comum obrigatório. Deus está lá e não olha mais pelo fiel mas para o fiel. E esse encarar de frente, ainda que seu rosto seja removido, transtorna a subjetividade de maneira delirante já que a mente humana tem por atributo mais essencial buscar explicações, ainda que elas venham por construções ficcionais impossíveis. Como durante o renascimento Cristo humanizou-se para aproximar com mais propriedade a identificação do homem comum a Ele (Deus encarnado em vida), e no gótico a dimensão da culpa assume a responsabilidade pelo Seu sofrimento em vida para assegurar-nos a redenção paradisíaca, agora, no barroco, a cruz revela-se mais importância em seu utilitário de dor e sadismo do que o corpo pregado nela. É o que resta ao fiel já absorvido pelo labirinto de volutas e curvas barrocas, a dor exposta à punição do erro. Deus feriu-se vivo para mostrar ao comum sua intransigência à desobediência. Não é o homem punido que observamos no crucifixo, mas a promessa de seu retorno, da espada em mãos e do julgamento avisado. E a esse obscuro e tenebroso encontro com o divino distanciado novamente do homem é que a iluminação numa catedral barroca deve servir: ao não esclarecimento, ao indireto, ao tortuoso estado impossível de encontro com o divino limitado que está a nos assistir de fora de nós.

Se por um lado as iluminações góticas, renascentistas e barrocas consolidaram as funções das catedrais construídas em suas respectivas épocas aos serviços das ideologias da instituição e seus comandantes, por outro representavam a fé materializada em dois momentos: ao serem iluminadas pela luz exterior, solar, diurna, natural, e ao serem iluminadas pelo fogo das chamas de velas, portanto noturnas, construídas e misteriosas. Há no fogo o encantamento natural de uma subjetividade em constante fazer-se. Sua incapacidade em permanecer torna-o fascinante aos olhos que, quase sempre, se apaixonam de maneira condicionada ao brilho e dança. O movimento ininterrupto, a presença viva da imagem e do calor, a existência efêmera e desprotegida, transferem para as catedrais os mesmos princípios, dando vida às esculturas e formas, estruturas e arquiteturas, circundando o fiel por presença e tempo. E é nesse binário – presença e tempo – que o fiel encontra o divino após decodificar o primeiro como sendo onipresença e o segundo como eternidade. Juntos, o infinito surge ao homem como fé e contextualiza a edificação como instrumento de acesso ao sublime e indescritível.

Após a substituição do fogo da chama pela lâmpada elétrica parte do encontro com o divino se esvai ao romper o binário presença-tempo. É preciso que o fiel traga em si a fé, construa-a por uma espécie de vocação e acorde ser a catedral o espaço preciso para sua manifestação. A luz artificial e inerte, controlável e manipulada pelo desejo de convencimento de outro homem ao próprio homem, restringe a relação do fiel com o sublime que passa a experienciar pela convenção e não mais pelo encontro real individual. Mas de alguma maneira estão ainda no edifício os princípios para que esta união seja possível, ao menos como sítio de localização e congregação dos valores. Necessidade moderna, a luz elétrica, a lâmpada é, antes de tudo, a pontuação de outro momento histórico, do tempo presente que ainda mantém seus mistérios condicionados à real função do edifício de abrigar e consolidar a fé.

A estetização, contudo, especificamente a teatralização provida de cenografias rudimentares que assola os espaços históricos destituindo-lhes de boa parte da origem que os identifica e valida, surge por dois focos fundamentais: praticidade – e este é indiscutível se comparado às necessidades práticas de ontem, como acender, apagar, trocar, limpar os resíduos das velas – e restituição aparente de outro tempo. Nesse segundo argumento, contudo, o que se vê é a substituição do passado por sua caricatura mecanizada. Incapaz de conduzir a subjetividade à vivenciação do que fora, a cenografização do passado traz as mazelas da primeira fase de substituição estrutural e avança para uma segunda, quando o simbólico traduz mais do que as necessidades práticas, a desimportância do sublime. Travestindo o espaço de artificialidade caricata lê-se igual atitude ao discurso proferido ao fiel. Não importa mais à instituição nem a compreensão do fiel de sua finitude, nem a dimensão do divino em sua essência, nem mesmo o valor determinante de sua importância como transição e contato, mas certa manutenção da presença física do fiel feito agora personagem de convencimento ao outro. Se outra foram os santos, as cruzes, esculturas, arquiteturas, altares e elaborados jogos de iluminações, hoje é a presença de fiéis nos interiores das capelas a melhor propaganda para difusão da fé. Uma igreja vazia representa ausência, cheia representa o divino. Não que o divino esteja no homem, mas o divino traduzido em possibilidade de existência na fé do comum. Dessa maneira, a cenografização da fé, ao exigir a presença do fiel, necessita ser limitada aos anseios do duvidoso, do inquieto (sujeito perdido esse entre a descrença própria e a fé herdada), e para isso fundamenta no representar de modo prático o que ele espera ser sua essência arquitetônica e histórica passa a ser fundamental. Agradar ao não surpreender e por isso revelar em tom óbvio. As lâmpadas-velas e suas chamas congeladas e artificiais trazem ao duvidoso a percepção do todo em tempo real, sem sombras, sem sobreposições, sem labirintos. É o espaço da catedral exposto ao que supostamente é sua verdade, como se a verdade da fé fosse de fato o desejo do querer fazer dar certo o encontro com o divino. Não há verdade alguma mais, porém. A chama elétrica desperdiça a cenografia histórica e anula sua intenção, introduz o fiel como caricatura do discurso e banaliza a capacidade da subjetividade em encontrar no sutil e no tempo o divino. Uma vela e um fiel. Isso foi ontem. Uma lâmpada e um turista...

1 Comments:

  • Oi, Luteraníssimo Ruy

    Como deve ter sido bela e renovadora a viagem de vocês pela moderníssima idade média... Você gravou um pouco do concerto apreciado na catedral Dom? E por acaso você teve a oportunidade de ouvir o som daquele órgão espetacular?
    Mergulhando em luzes congeladas, sinto que a reinvenção do comum me perturba mais do que qualquer outra forma de provocação. O que me desafina é o fato de que o estabelecido comum, canônico ou transformado, relido ou reeleito, não oferece argumentos necessários para transcendermos em sintonia com as exponenciais descobertas sobre a convergência da revolução da informática, biomolecular e nanotecnológica. A estrutura dessa magnífica catedral, a sombreada gótica, a ilustrativa renascentista e a labiríntica barroca, apontam à intenção de manipulação que nos rebaixa de sócio preferencial para público pagante, independentemente da forma como estão sendo substituídos seus simbolismos. A presença de lâmpadas-velas, quando parte do espetáculo, apenas transporta o público para mais perto do próprio ego, lugar este enlameado pela ferocidade com que somos excluídos diariamente de novas e fundamentais informações, ontem em passos consecutivos e hoje saltos múltiplos. O fogo da vela nos remete mais a uma hipnose coletiva – talvez por ser o fogo o principal instrumento inquisidor - do que uma fé materializada. A catedral de Dom, ao ser iluminada pela luz exterior, diurna, natural, traz o Sol como componente unificador da fé. O Sol é a manifestação da presença e do tempo. Como poderíamos experimentar infinitude e resplandecência se há uma dicotomia latente entre o exterior e o interior dessa exuberante casa de Deus. Por fora, à noite, a catedral às vezes é iluminada como se fosse sede das Olimpíadas do milênio. Ela faz parte do seu sucesso. É fruto da experimentação vanguardista que retrata o nada com a união do absoluto. A catedral vira tela de cinema para disfarçar o fato de que o filme passado lá dentro não tem mais a presença de tantos espectadores assim. Por dentro, uma linguagem perdida no tempo, uma beleza inimaginável que nos leva a culpa por sermos e por não sermos. Mesmo a construção pela luz que manifesta a manipulação da subjetividade do frequentador, e você a descreve como ninguém, não tem mais tempo nem presença no mundo dos espectadores modernos, absorvidos em ter ao invés de ser.
    Imagine um avanço tecnológico sem precedentes na história, consumido por uma juventude indiferente, em um mundo precisando de limites. A vela simbólica e a fusão nuclear. O barroco com a nova Beijing. O gótico com a banda larga. O renascimento com a colonização de Marte. A historia da Arte se perde junto a infame globalidade da expressão do comum.
    Que a chama elétrica desperdiça a cenografia histórica e anula sua intenção artística, isso eu não tenho duvida. Contudo, introduzir o fiel como caricatura do discurso e banalizar a capacidade da subjetividade em encontrar no sutil e no tempo o divino, esta catedral já faz há pelo menos 500 anos, independentemente do processo evolutivo da vela. Uma vela e um fiel. Isso foi ontem. Uma lâmpada e um turista. Isso é hoje. Algumas lâmpadas...

    Beijos , Abeia.

    By Anonymous Abeia, at 7:49 PM  

Postar um comentário

<< Home