Antro Particular

31 março 2007

A proposta de abrir um outro espaço é uma resposta aos emails recebidos quase que diariamente de pedidos de ajuda na divulgação de outros trabalhos e eventos.
O novo blog, Antro Expandido, surge como um braço deste mais livre, sem compromisso crítico ou pré-julgamentos.
Muitos são os sites e portais a oferecerem a programação cultural da cidade.
Portanto, esse espaço nasce com o simples intúito de ajudar e agregar, aproveitando a freqüência do Antro Particular como mais uma possibilidade de informação.
O blog certamente crescerá ao acaso. Um pouco de paciência e tempo, são os ingredientes necessários.
Fica a tentativa, então...

RUY FILHO

19 março 2007

AMIGAS, PERO NO MUCHO: Com prosecco e qualidade

Com enredo óbvio, típico de comédias comerciais, Amigas, Pero no Mucho retrata a intimidade e convívio entre quatro mulheres que aos poucos vão revelando invejas, ciúmes e muito veneno. A primeira incursão na dramaturgia da jornalista Célia Regina Forte teve uma leitura no MASP dirigida por Paulo Autran e chega ao palco do Teatro Renaissance conduzida pelas mãos de José Possi Neto.

O que poderia ser mais um espetáculo sobre o universo feminino ganha possibilidades ao ter um elenco masculino. Claudio Fontana, Elias Andreato, Leopoldo Pacheco e Romis Ferreira interpretam as amigas em constante disputa por mais espaço junto à Débora (Pacheco), uma centralizadora mulher de meia-idade que utiliza a presença das amigas para se auto-afirmar emocionalmente.

Se por um lado o texto é comum, sem muita elaboração além da estratégia de construir momentos de humilhação de uma personagem a outra, por outro a generosidade e entrega dos atores faz com que o espetáculo se revele agradável. É curioso assisti-los se atrapalharem com as perucas e observar a facilidade do caminhar com saltos finos, deixando a sensação de ser o ator o elemento mais importante sobre o palco.

As referências são inevitáveis e filmes como Para Wong Foo, Obrigada por Tudo! e Priscila, a Rainha do Deserto surgem quase que imediatamente. Contudo, são quatro grandes atores que vão além do travestir para compor personagens realmente femininas, ainda que Romis Ferreira fique um pouco aquém das performances dos outros três, o que muito se deve também ao fato de seu personagem ser de todos o mais superficial. Já Elias Andreato vai ao ápice das possibilidades, surpreendendo, ridicularizando o óbvio e arrancando risadas até mesmo quando não é o foco principal.

A opção pelo teatro comercial, sem pesquisa conceitual e estética, é cada vez mais freqüente entre bons atores, que têm na capacidade de lucro fácil de tais montagens subterfúgios para sobreviver e assim continuar o ofício. Nada contra a sobrevivência. E se esta é uma das poucas possibilidades, então que se faça dignamente. Em Amigas, Pero No Mucho, a interpretação ultrapassa o valor de entretenimento e se revela ponto válido.

De modo geral, muitos se incomodam com os besteiróis e falta de originalidade que assolam os palcos de todo o país, como se o teatro experimental ou de pesquisa em grupo fosse de fato sempre melhor ou superior a todo o resto. Quem dera isso fosse verdade. Infelizmente, o que quase sempre se vê são péssimas montagens sem estrutura profissional, sem acabamento e qualidade. E como explicar ao executivo que passou doze horas no escritório, que conforto e estacionamento são supérfluos?

Esqueça a comicidade comum, os trocadilhos de sempre, a superficialidade das peças e se permita assistir sem preconceitos o teatrão e seus cenários da Tok&Stok, as taças de prosecco na recepção, a platéia disputando flashes. Há também aí verdadeiras obras-primas de nossos atores. Ao menos isso.

08 março 2007

RICARDO III: a face que prefirimos ocultar

Ricardo III foi escrita por W. Shakespeare nos anos 1592-3. Um dos nove dramas históricos do dramaturgo inglês, a peça retrata o momento após a morte do Rei Henrique, ao final de 30 anos de batalha entre os clãs York e Lancaster pelo controle do trono. Ricardo, deformado e coxo, traça um elaborado plano de conspirações e assassinatos para chegar à coroa.

A peça retrata como a política se consolida no poder e suas artimanhas para co-existir ao presente e futuro. Esta revolução na abordagem dramatúrgica conduz o pensamento teatral renascentista ao entendimento do Homem como produto do meio político e social do qual é parte, distanciando-o da sociedade agrária e teocrática medievais.

Ilustrar a construção do pensamento político enquanto metáfora de como a sociedade se organiza e consolida é uma das principais características responsáveis por fazer de Ricardo III um personagem típico de nossos parlamentos, rosto semelhante a tantos diariamente estampados nos jornais. Não há novidade na falta de moralidade. O interessante está na circunstância de assistir ao que vivenciamos hoje abordado em fatos tão distantes.

A explicação em si é mais complexa. O desejo pelo poder é responsável pela corrupção da alma ou faz parte do humano a disponibilidade pelo corromper-se? Um desejo, inerente estado individual de sobrevivência, cria inevitavelmente recursos próprios pelos quais a sua importância sobressai ao valor de outro desejo. Portanto, não estará igualmente na base do Poder a disponibilidade pelo se corromper?

Em Ricardo III, Shakespeare diz que sim, e faz disso arma para nos alertar sobre a fragilidade de nossa humanidade. Somos todos igualmente corruptíveis e nos diferenciamos dos monstros apenas pela ganância e abrangência dos nossos sonhos e desejos.

Aos interessados pela histórica, é preciso citar ainda a curiosa filmagem realizada por Al Paccino, em 1996, misturando making of, pré-produção da montagem teatral, cenas teatrais, o suposto filme realizado e investigações históricas dos fatos e personagens.

Já a montagem teatral de Ricardo III, dirigida por Jô Soares, com elenco global estrelar, que inclui Marco Ricca no papel principal, Glória Menezes e Denise Fraga, traz elementos calcados na perspectiva do diretor. Ou seja, como não poderia deixar de ser, Jô explora os momentos de cinismo e ironia do personagem - um misto de monstro e sedutor - determinando ao espetáculo maior leveza e dramaticidade, ao invés de intensificar a crueldade e o tom trágico com o qual o texto normalmente é explorado.

Com uma ótima tradução que contribui para a compreensão do enredo sem, entretanto, perder o ritmo da poesia shakesperiana, a peça é sustentada principalmente na instigante interpretação de Marco Ricca como protagonista.

Falta, contudo, melhor ajuste ao restante do elenco principal e apoio. E se por um lado Jô consegue primar pela qualidade da palavra, por outro a direção de cena se manifesta tímida e previsível, com certo ar de teatro de repertório e academicismo de um suposto modernismo, mas na verdade já conservador.

De qualquer maneira, mesmo não sendo excepcional, é uma ótima oportunidade para o público se encontrar com Shakespeare.

06 março 2007

EL CHINGO: e os fantasmas de cada um

Um homem solitário finge ser fanho e contrata uma empresa de atores especializada em psicodrama para rever sua mãe. Por equívoco, quem chega é um ator, que precisa realizar o serviço para se manter no emprego. Esta é a base do espetáculo El Chingo, escrito pelo dramaturgo venezuelano Edílio Peña.

A montagem, encenada pela Teatro Kaus Cia. Experimental e dirigida por Reginaldo Nascimento, pode ir além do que está, propondo experimentações maiores na interpretação e cena. O demasiado respeito ao texto, vencedor do Prêmio Nacional de Dramaturgia da Casa de la Cultura de Maracay, torna o espetáculo comedido e correto, sem riscos, mas ao mesmo tempo revela em Nascimento um diretor objetivo, honesto.

Se ficamos com vontade de ver surpresas, ao mesmo tempo é nítida a luta da companhia Kaus por amadurecimento de uma linguagem própria. E isso infelizmente é raridade entre os grupos atuais.

A escolha pela ênfase no final trágico traz acertos e fragilidades. Ao conduzir a criação dos personagens de maneira mais agressiva, esquizofrênica, o espetáculo ganha em potência dramática, ainda que isso enfraqueça o humor próprio da situação.

Perde-se também a possibilidade de ser trabalhada a metáfora da atuação, do fingir, na busca clara do texto em transcender ao teatro, elaborando um interessante jogo meta-teatral para refletir sobre a condição própria do homem e a necessidade constante de se fazer outro para dialogar com seus medos e semelhantes.

Edílio Peña oferece mais do que jogos de cena. Elabora um complexo sistema de metáforas sobre o fazer teatral, deixando claro suas críticas ao amadorismo e despreparo dos profissionais. Em falas aparentemente casuais, surgem comentários ácidos ao comportamento familiar e a situação política venezuelana, quando o país é confundido com a Bolívia, por exemplo.

No melhor estilo de Harold Pinter, o conflito é recheado por silêncios de incompreensão do outro e cumplicidade, silêncios esses esquecidos na montagem, que trata o texto de maneira tradicional e ortodoxa.

Há o tom sarcástico do ridículo na situação do ator travestido em mãe, no fanho fingido, na mesa posta feito cenário para compor o encontro com os diálogos escritos pelo contratante, na foto de Vivian Leigh, tal como uma mãe perfeita. Instigante, aos poucos o enredo mostra as contradições dos personagens, conduzindo o espectador a uma busca frenética por compreensão.

Mas não é sobre o entendimento que fala El Chingo, pelo contrário. O espetáculo trata de culpas, sensações guardadas que necessitam ser expurgadas e que só dizem respeito a seus personagens, angústias e solidões. E nos reporta a uma viagem aos nossos próprios fantasmas.

El Chingo mostra por que Peña é um dos mais interessantes dramaturgos latinos, com montagens em diversos países. Sua dramaturgia vai além da construção impecável para compor momentos de inquietação da alma do homem contemporâneo. Um retrato duro do que nos tornamos quando a solidão é cada vez mais a nossa defesa.

05 março 2007

01 março 2007

NA FALÊNCIA DO HUMANO, A DESISTÊNCIA DO ARTISTA CRIADOR

A partir de hoje passo a escrever também uma coluna no site Officina do Pensamento, coordenado por Ana Peluso. O primeiro texto já está no ar:


Abraços
RUY FILHO

Acontece o tempo todo, freqüentemente. Como se fosse normal, ninguém responde, contra-ataca. Ficam apenas o silêncio, a decepção e alguns resmungos amargurados entre amigos. O fato é que as idéias não têm propriedade e podem ser requeridas por qualquer um. Enquanto estão por aí, circulando em fingidas vitórias, os falsários, usurpadores ou meros artistas incapazes de contribuir com criações próprias e genuínas. Acontece e muito... Amigos, vizinhos, filhos, pais, irmãos, amantes, professores, mestres, ídolos. Na verdade não importa quem o seja. Tanto faz. A atitude, quando feita em desespero, revela menos do caráter e mais da fraqueza criativa de quem necessita atribuir para si uma idéia de outro.

Jung vai à defesa explicando que as idéias estão todas expostas ao tempo feito poeiras espalhadas no ar. Cada época possui as suas, e, portanto, é plausível a originalidade simultânea. Acredito nisso. Circunstâncias específicas capazes de levar indivíduos a mesmas percepções e manifestações criativas similares. Por que não?

Como a tentativa de Picasso em retratar em suporte bidimensional a simultaneidade tridimensional de um objeto e a elaboração da Relatividade, onde tempo e espaço se associam na forma de curva, por Albert Einstein. No ano de 1905, o físico apresenta sua teoria. Em 1907, o pintor inicia a elaboração da estética cubista. Não se conheceram. Suas idéias representavam o início de um novo século. Um pelas tintas, o outro por números.

Também a apropriação de idéias é bem-vinda. A soma de visões sobre um elemento inicial desdobra o original em possibilidades infinitas, e isso tem por si só o seu valor no discurso pós-moderno. Esquecer o novo como necessidade primordial e obrigação criativa, para usufruir as possibilidades existentes e gerar outros argumentos com o mesmo material. Irônico, provocativo, crítico. Há aí certa sabedoria no querer discordar da ordem utilizando-a como matéria-prima.

Duchamp radicalizou a estética ao interferir sobre o elemento básico da arte: a criação. Dogma milenar, o gesto construtivo, individual, foi abandonado ao sabor do apropriar-se. Discursar com o já existente. Trazer do mundo os elementos de uma criação que agora passa a se manifestar em idéia e não mais ação. O pós-guerra viu a necessidade do homem e da arte se rever enquanto idéia. E patinamos nesse abismo até esse minuto.

Entretanto, não são esses os aspectos quais percebo por aí. A cópia, o plágio de uma idéia não surge pela criação eqüidistante de uma mesma percepção, tampouco pelo gesto consciente da revisão. Os artistas de hoje, esses (e são muitos!) que pelas ruas arrotam coincidências, mais se parecem com os camelôs distribuindo cds e dvds piratas trabalhando sob a expectativa da descoberta, embebido em adrenalina do medo, da face nervosa e olhares inseguros. Abusam das influências, manipulam relações e sem direito algum, sem autorização e cumplicidade solucionam suas incapacidades pelo furto. Ignoram o crédito das criações. Absorvem-nas para si em ato cínico e calculista. São ladrões, e nada mais. Deixaram de ser artistas quando vestiram a hipócrita máscara de genialidade, em busca de mera aceitação e parcial reconhecimento num imediatismo obviamente destinado ao fracasso.

Ora, todos temos recessos e ressacas. Vazios que se instalam impedindo o surgimento da idéia. E respeitar a isso é também fruto de amadurecimento e humildade. Perceber a necessidade de novos estímulos, outros discursos e referências. Entender a dinâmica do caminhar infinito e ininterrupto do tempo e seu gerar outras épocas.

Roubar, mentir, sorrir em entrevistas descartando a consciência de seus atos, nada mais é que a decadência absoluta do ser artista. Ridícula ilusão de acreditar em um futuro quando tudo voltará ao normal. Não voltará jamais. Faz-se vício. A próxima idéia não virá. Será igualmente copiada. E assim até o fim, se é que este já não é o limite do não-artista.

Não é a arte que está acabando, são os artistas.

É preciso falar, denunciar, desmentir, pegar de volta. Gritar ao mundo os abusos e romper as barreiras do medo e respeito. Expulsar das galerias, dos teatros, dos cinemas, das livrarias.

Se os donos da arte, os piratas das idéias, controlam também as portas para o reconhecimento, então que se abram outras estradas. Deixe-os com seus discursos inconstantes, suas incapacidades crônicas. Façamos para nós novos mundos, novos públicos, outros leitores e amigos. Seguir... Com o peito desafogado da decepção, os olhos mais maduros e honestos. Assistindo-os derrotados. Ignorando-os. Aguardando suas mortes. Enterrando-os. Esquecendo-os.

Que a arte prevaleça aos miseráveis, aos infelizes piratas aproveitadores e suas piratarias. Que sejamos fortes para não sermos derrotados. Que o tempo desmascare o ridículo. Um dia voltaremos a dormir tranqüilos conscientes que no fundo somos parte dos poucos verdadeiros. Idéias novas sempre existirão. E o artista se revela na constância de suas criações e crises, soluções e vazios, vitórias e enganos.

Arte é acima de tudo o conduzir discursos estéticos para gerar proposições pessoais. Sobre o homem, a vida, o mundo, o nada, o tudo, si mesmo... E se muitos dos artistas de hoje mais se parecem piratas escondidos nas esquinas, sentados nas nossas salas, recebendo aplausos indevidos, menções honrosas, prêmios, então, por favor, não me chame mais assim. Respiro minhas idéias com coerência e respeito. Assumo meus instintos e referências. Admito minhas imperfeições e deficiências. Sem temer o fracasso. Sem fugir das verdades. Portanto, entre tornar-me isso ou sucumbir ao anonimato, prefiro ser chamado apenas pelo nome.