Antro Particular

01 março 2007

NA FALÊNCIA DO HUMANO, A DESISTÊNCIA DO ARTISTA CRIADOR

A partir de hoje passo a escrever também uma coluna no site Officina do Pensamento, coordenado por Ana Peluso. O primeiro texto já está no ar:


Abraços
RUY FILHO

Acontece o tempo todo, freqüentemente. Como se fosse normal, ninguém responde, contra-ataca. Ficam apenas o silêncio, a decepção e alguns resmungos amargurados entre amigos. O fato é que as idéias não têm propriedade e podem ser requeridas por qualquer um. Enquanto estão por aí, circulando em fingidas vitórias, os falsários, usurpadores ou meros artistas incapazes de contribuir com criações próprias e genuínas. Acontece e muito... Amigos, vizinhos, filhos, pais, irmãos, amantes, professores, mestres, ídolos. Na verdade não importa quem o seja. Tanto faz. A atitude, quando feita em desespero, revela menos do caráter e mais da fraqueza criativa de quem necessita atribuir para si uma idéia de outro.

Jung vai à defesa explicando que as idéias estão todas expostas ao tempo feito poeiras espalhadas no ar. Cada época possui as suas, e, portanto, é plausível a originalidade simultânea. Acredito nisso. Circunstâncias específicas capazes de levar indivíduos a mesmas percepções e manifestações criativas similares. Por que não?

Como a tentativa de Picasso em retratar em suporte bidimensional a simultaneidade tridimensional de um objeto e a elaboração da Relatividade, onde tempo e espaço se associam na forma de curva, por Albert Einstein. No ano de 1905, o físico apresenta sua teoria. Em 1907, o pintor inicia a elaboração da estética cubista. Não se conheceram. Suas idéias representavam o início de um novo século. Um pelas tintas, o outro por números.

Também a apropriação de idéias é bem-vinda. A soma de visões sobre um elemento inicial desdobra o original em possibilidades infinitas, e isso tem por si só o seu valor no discurso pós-moderno. Esquecer o novo como necessidade primordial e obrigação criativa, para usufruir as possibilidades existentes e gerar outros argumentos com o mesmo material. Irônico, provocativo, crítico. Há aí certa sabedoria no querer discordar da ordem utilizando-a como matéria-prima.

Duchamp radicalizou a estética ao interferir sobre o elemento básico da arte: a criação. Dogma milenar, o gesto construtivo, individual, foi abandonado ao sabor do apropriar-se. Discursar com o já existente. Trazer do mundo os elementos de uma criação que agora passa a se manifestar em idéia e não mais ação. O pós-guerra viu a necessidade do homem e da arte se rever enquanto idéia. E patinamos nesse abismo até esse minuto.

Entretanto, não são esses os aspectos quais percebo por aí. A cópia, o plágio de uma idéia não surge pela criação eqüidistante de uma mesma percepção, tampouco pelo gesto consciente da revisão. Os artistas de hoje, esses (e são muitos!) que pelas ruas arrotam coincidências, mais se parecem com os camelôs distribuindo cds e dvds piratas trabalhando sob a expectativa da descoberta, embebido em adrenalina do medo, da face nervosa e olhares inseguros. Abusam das influências, manipulam relações e sem direito algum, sem autorização e cumplicidade solucionam suas incapacidades pelo furto. Ignoram o crédito das criações. Absorvem-nas para si em ato cínico e calculista. São ladrões, e nada mais. Deixaram de ser artistas quando vestiram a hipócrita máscara de genialidade, em busca de mera aceitação e parcial reconhecimento num imediatismo obviamente destinado ao fracasso.

Ora, todos temos recessos e ressacas. Vazios que se instalam impedindo o surgimento da idéia. E respeitar a isso é também fruto de amadurecimento e humildade. Perceber a necessidade de novos estímulos, outros discursos e referências. Entender a dinâmica do caminhar infinito e ininterrupto do tempo e seu gerar outras épocas.

Roubar, mentir, sorrir em entrevistas descartando a consciência de seus atos, nada mais é que a decadência absoluta do ser artista. Ridícula ilusão de acreditar em um futuro quando tudo voltará ao normal. Não voltará jamais. Faz-se vício. A próxima idéia não virá. Será igualmente copiada. E assim até o fim, se é que este já não é o limite do não-artista.

Não é a arte que está acabando, são os artistas.

É preciso falar, denunciar, desmentir, pegar de volta. Gritar ao mundo os abusos e romper as barreiras do medo e respeito. Expulsar das galerias, dos teatros, dos cinemas, das livrarias.

Se os donos da arte, os piratas das idéias, controlam também as portas para o reconhecimento, então que se abram outras estradas. Deixe-os com seus discursos inconstantes, suas incapacidades crônicas. Façamos para nós novos mundos, novos públicos, outros leitores e amigos. Seguir... Com o peito desafogado da decepção, os olhos mais maduros e honestos. Assistindo-os derrotados. Ignorando-os. Aguardando suas mortes. Enterrando-os. Esquecendo-os.

Que a arte prevaleça aos miseráveis, aos infelizes piratas aproveitadores e suas piratarias. Que sejamos fortes para não sermos derrotados. Que o tempo desmascare o ridículo. Um dia voltaremos a dormir tranqüilos conscientes que no fundo somos parte dos poucos verdadeiros. Idéias novas sempre existirão. E o artista se revela na constância de suas criações e crises, soluções e vazios, vitórias e enganos.

Arte é acima de tudo o conduzir discursos estéticos para gerar proposições pessoais. Sobre o homem, a vida, o mundo, o nada, o tudo, si mesmo... E se muitos dos artistas de hoje mais se parecem piratas escondidos nas esquinas, sentados nas nossas salas, recebendo aplausos indevidos, menções honrosas, prêmios, então, por favor, não me chame mais assim. Respiro minhas idéias com coerência e respeito. Assumo meus instintos e referências. Admito minhas imperfeições e deficiências. Sem temer o fracasso. Sem fugir das verdades. Portanto, entre tornar-me isso ou sucumbir ao anonimato, prefiro ser chamado apenas pelo nome.