LINHA DE PASSE e ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA: cinema brasileiro ou cinema do Brasil?
Recuperando temas que gostaria de ter ampliado e discutido por aqui, nessas semanas de abandono e dedicação absoluta à montagem do novo espetáculo, está a maneira como a arte tem dialogado com os artistas brasileiros. Especificamente o cinema. E não qualquer cinema. Dois foram os filmes em cartaz, recentemente, condutores de nossos interesses diretos: “Ensaio sobre a Cegueira” e “Linha de Passe”.
Dois influentes diretores brasileiros nesta década, Fernando Meirelles e Walter Salles, respectivamente, trouxeram às telonas recentes trabalhos. E muito surgiu daí em mesas de bares e resenhas alternativas nesses últimos meses.
Como já foi dito absurdos e exaltações para ambos, limitar-me-ei a entender os aspectos que circundam os falatórios mais genéricos, predizendo um breve comentário a cada. Enquanto “Linha de Passe” alcançou generosa aprovação do meio cinematográfico jovem, “Ensaio sobre a Cegueira” recebera impiedosas considerações desde os caminhos estéticos escolhidos até o roteiro comparado ao livro.
“Linha de Passe” perambula o universo tangencial da sociedade, a partir do ponto de vista burguês classe-média que toma a si como centro, enquanto compreende o entorno, a partir do distanciamento seguro, por uma percepção fraternal e nada vivencial. Ou seja, o filme, como também ocorrera em trabalhos anteriores de Salles, busca aprofundar-se na rotina dos indivíduos à margem com certo ar de piedade e comoção àqueles que não terão outra alternativa que não a permanência de suas misérias. A ladainha piegas de ser o pobre, o favelado, o desprovido inevitavelmente incapaz de fugir da marginalização. O garoto que necessita subornar o sistema para ser aceito num clube de futebol; o motoboy que sucumbe ao crime para dar conta da existência de um filho adoentado fruto de uma relação adolescente descuidada; a criança negra, de mãe branca abandonada, em busca do pai desconhecido; o jovem pastor correto entregue aos vícios mundanos. Walter Salles continua sua trajetória de filmar o brasileiro e fazer do cinema nossa imagem.
Já “Ensaio sobre a Cegueira” busca traduzir em imagens a amplitude da capacidade literária de José Saramago. Impossível processo de transcender e dar presença aos imaginários e expectativas de cada leitor desse clássico da literatura contemporânea em língua portuguesa. Críticas e frustrações inevitáveis. Através do contágio inexplicável, uma sociedade inteira permanece cega, restando apenas uma mulher inatingida, Os primeiros a apresentarem a cegueira branca são trancafiados, criando assim a representação laboratorial da degradação generalizada da sociedade e do humano. A perspectiva do animalesco em busca de sobrevivência imediatista, física e moral, confronta-se com a submissão a sistemas de desvalorização do indivíduo. Dentro do prédio-quarentena, os internos constituem uma outra organização social e política, revelada similar ao caos das ruas, no momento em que a liberdade dos internos ocorre. Ao fim, quando a doença igualmente desaparece sem explicação, resta-nos o rosto da protagonista encarando o horizonte e descobrindo que, agora que a normalidade da visão retornara, ela, solitariamente, descobre-se “cega” outra vez em multidão. Fernando Meirelles faz, assim, do cinema a expressão de um artista brasileiro, sem a preocupação de ser local.
Entre percepções e gostos, o discurso, entretanto, a ser debatido é quanto ao posicionamento dos próprios artistas quanto aos filmes. Muitos foram, e em maioria, que questionaram as escolhas estéticas de Meirelles argumentando que “entendiam diferente”, sempre a partir de suas próprias idealizações sobre a literatura. O mais importante nesse aspecto é não ignorarmos o fato nada simplista do próprio escritor reconhecer-se na película e positivamente se surpreender. Questionarmos as opções de Meirelles passa a ser um modo narcisista, ponderando pela correspondência aos nossos próprios anseios criativos. Como se houvesse maneiras certas de entender e representar a história, e tivesse Fernando errado por não tê-la feita à maneira imaginada.
Por outro lado, a exaltação a Salles traduz o conforto de nos depararmos com o imaginado, com o reconhecível, ainda que isso traduza, em certo sentido, a criação óbvia. Para os que tanto criticaram Fernando Meirelles e se incomodaram com sua visão particular, Salles se apresenta perfeito ao não enfrentamento conceitual estético, condicionado pela bela fotografia de “Linha de Passe” e a pouca capacidade em ir além do esperado.
A questão, portanto, é o quanto incômoda uma assinatura é para outros artistas. É mais fácil aceitar o comum, o previsível. Nossos artistas se perderam em vazios solitários e mediocrizados pela distância do outro. Fernando Meirelles criou um elaborado discurso estético apropriando-se das capacidades técnicas para conduzi-las ao conceito. Salles fez do correto a vontade de ser reconhecido. E entre a ousadia e a perfeição, fico com a primeira, pois me estimula, provoca, instiga, enquanto a segunda, apenas revela que com a equipe certa se faz o certo.
Cegos estão aqueles que de tanto olharem para dentro são incapazes de reconhecer uma proposição artística verdadeira, ainda que com problemas, defeitos, ou seja lá como quiserem adjetivar para diminuir sua importância, não importa, mas sempre a pessoalidade apenas existente nos mais inquietos artistas.
Dois influentes diretores brasileiros nesta década, Fernando Meirelles e Walter Salles, respectivamente, trouxeram às telonas recentes trabalhos. E muito surgiu daí em mesas de bares e resenhas alternativas nesses últimos meses.
Como já foi dito absurdos e exaltações para ambos, limitar-me-ei a entender os aspectos que circundam os falatórios mais genéricos, predizendo um breve comentário a cada. Enquanto “Linha de Passe” alcançou generosa aprovação do meio cinematográfico jovem, “Ensaio sobre a Cegueira” recebera impiedosas considerações desde os caminhos estéticos escolhidos até o roteiro comparado ao livro.
“Linha de Passe” perambula o universo tangencial da sociedade, a partir do ponto de vista burguês classe-média que toma a si como centro, enquanto compreende o entorno, a partir do distanciamento seguro, por uma percepção fraternal e nada vivencial. Ou seja, o filme, como também ocorrera em trabalhos anteriores de Salles, busca aprofundar-se na rotina dos indivíduos à margem com certo ar de piedade e comoção àqueles que não terão outra alternativa que não a permanência de suas misérias. A ladainha piegas de ser o pobre, o favelado, o desprovido inevitavelmente incapaz de fugir da marginalização. O garoto que necessita subornar o sistema para ser aceito num clube de futebol; o motoboy que sucumbe ao crime para dar conta da existência de um filho adoentado fruto de uma relação adolescente descuidada; a criança negra, de mãe branca abandonada, em busca do pai desconhecido; o jovem pastor correto entregue aos vícios mundanos. Walter Salles continua sua trajetória de filmar o brasileiro e fazer do cinema nossa imagem.
Já “Ensaio sobre a Cegueira” busca traduzir em imagens a amplitude da capacidade literária de José Saramago. Impossível processo de transcender e dar presença aos imaginários e expectativas de cada leitor desse clássico da literatura contemporânea em língua portuguesa. Críticas e frustrações inevitáveis. Através do contágio inexplicável, uma sociedade inteira permanece cega, restando apenas uma mulher inatingida, Os primeiros a apresentarem a cegueira branca são trancafiados, criando assim a representação laboratorial da degradação generalizada da sociedade e do humano. A perspectiva do animalesco em busca de sobrevivência imediatista, física e moral, confronta-se com a submissão a sistemas de desvalorização do indivíduo. Dentro do prédio-quarentena, os internos constituem uma outra organização social e política, revelada similar ao caos das ruas, no momento em que a liberdade dos internos ocorre. Ao fim, quando a doença igualmente desaparece sem explicação, resta-nos o rosto da protagonista encarando o horizonte e descobrindo que, agora que a normalidade da visão retornara, ela, solitariamente, descobre-se “cega” outra vez em multidão. Fernando Meirelles faz, assim, do cinema a expressão de um artista brasileiro, sem a preocupação de ser local.
Entre percepções e gostos, o discurso, entretanto, a ser debatido é quanto ao posicionamento dos próprios artistas quanto aos filmes. Muitos foram, e em maioria, que questionaram as escolhas estéticas de Meirelles argumentando que “entendiam diferente”, sempre a partir de suas próprias idealizações sobre a literatura. O mais importante nesse aspecto é não ignorarmos o fato nada simplista do próprio escritor reconhecer-se na película e positivamente se surpreender. Questionarmos as opções de Meirelles passa a ser um modo narcisista, ponderando pela correspondência aos nossos próprios anseios criativos. Como se houvesse maneiras certas de entender e representar a história, e tivesse Fernando errado por não tê-la feita à maneira imaginada.
Por outro lado, a exaltação a Salles traduz o conforto de nos depararmos com o imaginado, com o reconhecível, ainda que isso traduza, em certo sentido, a criação óbvia. Para os que tanto criticaram Fernando Meirelles e se incomodaram com sua visão particular, Salles se apresenta perfeito ao não enfrentamento conceitual estético, condicionado pela bela fotografia de “Linha de Passe” e a pouca capacidade em ir além do esperado.
A questão, portanto, é o quanto incômoda uma assinatura é para outros artistas. É mais fácil aceitar o comum, o previsível. Nossos artistas se perderam em vazios solitários e mediocrizados pela distância do outro. Fernando Meirelles criou um elaborado discurso estético apropriando-se das capacidades técnicas para conduzi-las ao conceito. Salles fez do correto a vontade de ser reconhecido. E entre a ousadia e a perfeição, fico com a primeira, pois me estimula, provoca, instiga, enquanto a segunda, apenas revela que com a equipe certa se faz o certo.
Cegos estão aqueles que de tanto olharem para dentro são incapazes de reconhecer uma proposição artística verdadeira, ainda que com problemas, defeitos, ou seja lá como quiserem adjetivar para diminuir sua importância, não importa, mas sempre a pessoalidade apenas existente nos mais inquietos artistas.
3 Comments:
Ótimas palavras meu caro! Abração!
shareid
By Rogério Shareid, at 5:37 PM
Grandes palavras meu caro! Abração!
shareid
By Rogério Shareid, at 5:38 PM
Obrigado, querido.
Poucos são os reais artistas no nosso cinema que têm se preocupado em entender o outro. Você é um dentre essa multidão louca. A diferênça é sua maneira doce e consciente de criar e trabalhar.
Os dias em Ribeirão me ensinaram muito sobre sua arte.
Beijos
By Ruy Filho, at 5:54 PM
Postar um comentário
<< Home