COMPLEXO SISTEMA em Curitiba: Não se sai indiferente com a Cia. Antro Exposto - por Valmir Santos
Gerald Thomas, que tantos momentos de inquietação trouxe a este Festival, tem em Ruy Filho um representante à altura. O diretor já foi assistente do encenador. E nos apresenta Complexo Sistema de Enfraquecimento da Sensibilidade, com a Companhia de Teatro Antro Exposto.
Desde o princípio, com uma voz ofegante ao microfone, temos a citação a Thomas, ou mesmo reverência assumida. Tal discípulo, Ruy Filho concebe um espetáculo estilhaçado em leituras, em camadas que passam pela música, pelas artes visuais, pela performance.
A arquitetura da Casa Vermelha, seu pé direito alto, sua vastidão de fundo, servem perfeitamente à narração espacial valorizada tanto quanto os atores, o texto, a luz e a música, vozes que se pretende sincronizadas com o desejo de não se perder ao menos um fio de fábula. Como se fosse estendida ao público uma corda mínima por meio da qual ele possa transitar no painel de distorções que se ergue.
Isso não quer dizer concessões, mas “a simplificação que complica”, para citar a dramaturgia também assinada por Ruy Filho. O estranhamento não diminui. Não há propriamente personagens, mas figuras. O prólogo, se é que podemos chamar assim, já explode em significados com suas inúmeras tiras de elásticos presas/soltas de um corpo.
O pretexto de visitar a relação da vítima de tortura com seu algoz desdobra-se em outros textos. Esse miolo vem em ondas de violência e afeto, incongruências que vão aproximando os arquétipos em jogo. Tocar ou escutar o violoncelo, por exemplo, pode ser o principal elo. E seu maior paradoxo.
Há um fértil terreno onírico como ponto de fuga ou mesmo para referendar a opressão. Transcende-se a esfera individual até a superestrutura da sociedade, como no instante em que se expõe o círculo de homens em torno de um único cilindro de oxigênio, atávicos.
Complexo Sistema de Enfraquecimento da Sensibilidade cria uma profusão de imagens expressionistas sem fazer uso de ferramentas tecnológicas audiovisuais. Inevitável o paralelo com Thomas e seu domínio operístico da cena em grande escala, palco proporcional. Aqui, a via é a do despojamento com sofisticação conceitual, dos espaços não convencionais como o do Satyros, em São Paulo, onde a Antro Exposto atualmente está em cartaz, ou ainda num dos barracões do Centro Cultural Rio Verde, na Vila Madalena também paulistana.
São imagens, antes, construídas por meio da ação física dos seis atores, dos objetos (como o aro de bicicleta a evocar Duchamp), dos corpos disformes (embates verbal e físico entre Diego Torraca e Guilherme Gorski em suas inversões de carrasco), do manequim sobressalente, das pilastras e das paredes da Casa Vermelha, do desenho de luz arrojado... Todos esses elementos são sublinhados com autonomia, mas só se traduzem quando em conjunto.
Exceção a um item: a música. Ela exacerba, descola-se do todo. Não está em xeque a trilha pulsante de autoria do diretor musical do lendário grupo norte-americano The Living Theatre, Patrick Grant, crucial para a proposta - ele esteve em São Paulo com os criadores brasileiros. Mas a encenação parece incorporá-la sem edição, sem respiro. Essa música dominante às vezes resulta transferência de sensação que afasta o espectador. A analogia com a tortura, afinal, não precisa ser ao pé da letra.
No mais, não se sai indiferente dessa ousada experiência cênica, dessa ilha de desordens que é Complexo Sistema de Enfraquecimento da Sensibilidade. Um espetáculo brutal, que acessa áreas subreptícias do mascaramento humano em suas banalizações do mal e do bem. Em última instância, à arte compete essa mediação.
texto originalmente publicado no blog oficial do Festival de Curitiba.
Desde o princípio, com uma voz ofegante ao microfone, temos a citação a Thomas, ou mesmo reverência assumida. Tal discípulo, Ruy Filho concebe um espetáculo estilhaçado em leituras, em camadas que passam pela música, pelas artes visuais, pela performance.
A arquitetura da Casa Vermelha, seu pé direito alto, sua vastidão de fundo, servem perfeitamente à narração espacial valorizada tanto quanto os atores, o texto, a luz e a música, vozes que se pretende sincronizadas com o desejo de não se perder ao menos um fio de fábula. Como se fosse estendida ao público uma corda mínima por meio da qual ele possa transitar no painel de distorções que se ergue.
Isso não quer dizer concessões, mas “a simplificação que complica”, para citar a dramaturgia também assinada por Ruy Filho. O estranhamento não diminui. Não há propriamente personagens, mas figuras. O prólogo, se é que podemos chamar assim, já explode em significados com suas inúmeras tiras de elásticos presas/soltas de um corpo.
O pretexto de visitar a relação da vítima de tortura com seu algoz desdobra-se em outros textos. Esse miolo vem em ondas de violência e afeto, incongruências que vão aproximando os arquétipos em jogo. Tocar ou escutar o violoncelo, por exemplo, pode ser o principal elo. E seu maior paradoxo.
Há um fértil terreno onírico como ponto de fuga ou mesmo para referendar a opressão. Transcende-se a esfera individual até a superestrutura da sociedade, como no instante em que se expõe o círculo de homens em torno de um único cilindro de oxigênio, atávicos.
Complexo Sistema de Enfraquecimento da Sensibilidade cria uma profusão de imagens expressionistas sem fazer uso de ferramentas tecnológicas audiovisuais. Inevitável o paralelo com Thomas e seu domínio operístico da cena em grande escala, palco proporcional. Aqui, a via é a do despojamento com sofisticação conceitual, dos espaços não convencionais como o do Satyros, em São Paulo, onde a Antro Exposto atualmente está em cartaz, ou ainda num dos barracões do Centro Cultural Rio Verde, na Vila Madalena também paulistana.
São imagens, antes, construídas por meio da ação física dos seis atores, dos objetos (como o aro de bicicleta a evocar Duchamp), dos corpos disformes (embates verbal e físico entre Diego Torraca e Guilherme Gorski em suas inversões de carrasco), do manequim sobressalente, das pilastras e das paredes da Casa Vermelha, do desenho de luz arrojado... Todos esses elementos são sublinhados com autonomia, mas só se traduzem quando em conjunto.
Exceção a um item: a música. Ela exacerba, descola-se do todo. Não está em xeque a trilha pulsante de autoria do diretor musical do lendário grupo norte-americano The Living Theatre, Patrick Grant, crucial para a proposta - ele esteve em São Paulo com os criadores brasileiros. Mas a encenação parece incorporá-la sem edição, sem respiro. Essa música dominante às vezes resulta transferência de sensação que afasta o espectador. A analogia com a tortura, afinal, não precisa ser ao pé da letra.
No mais, não se sai indiferente dessa ousada experiência cênica, dessa ilha de desordens que é Complexo Sistema de Enfraquecimento da Sensibilidade. Um espetáculo brutal, que acessa áreas subreptícias do mascaramento humano em suas banalizações do mal e do bem. Em última instância, à arte compete essa mediação.
texto originalmente publicado no blog oficial do Festival de Curitiba.
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