CARTA ABERTA DE EMANOEL ARAÚJO - EX-SECRETÁRIO MUNICIPAL DE CULTURA - AO PREFEITO DE SÃO PAULO JOSÉ SERRA
Postado na hospedagem anterior do blog na terça-feira, 12 de abril de 2005
04:15:11
"Devolvo-lhe este cargo com uma enorme frustração"
íntegra da carta envida à Folha de S. Paulo:
"Caminante no hay camino, se hace camino al andar
Antonio Machado, poeta espanhol
Ao saudoso Mário Covas, in memoriam
Carta aberta ao prefeito de São Paulo, José Serra, ou a propósito de uma renúncia
Senhor prefeito José Serra:
Quero aqui, através "dessas mal traçadas linhas", começando dessa forma prosaica, a lhe dizer do grande equívoco que foi minha nomeação, em face de um convite cheio de esperança feito a mim, antes de sua posse.
Eu mesmo já houvera recusado outros convites iguais ao seu, por entender que uma secretaria de cultura se faz com CULTURA, se faz conhecendo as causas e conseqüências do conteúdo maior que essa simples palavra tem como significado, se faz contextualizando na história, com a memória, com a vida pulsando a cada momento, sem achaques, sem privilégios.
Por que essa conquista tem de e deve ser um bem para todos, e eu falo de CULTURA, sem arremedos, sem o maneirismo desses poucos que pensam que são os privilegiados de Deus e que podem sentar-se numa poltrona de um teatro com toda sua arrogância e ignorância, sem se dar conta que a poltrona em que estão sentados está rota ou com o veludo que, de tão gasto, não tem mais cor, com seu estofo em péssimas condições, e se saciam, no intervalo, tomando champanhe para exibir suas roupas e bijuterias, já que as jóias verdadeiras ficaram bem guardadas nos cofres --usá-las num teatro no centro da cidade, ameaçados pela pobreza, seria, aí sim, uma ameaça aos tesouros da família.
Não, senhor prefeito, isso só não é cultura; cultura é o que foi produzido por uma verdadeira elite do saber e do conhecimento, erudito ou popular, através da qual esse repertório existe até hoje, depois de séculos de sua criação; cultura, portanto, são todas as ações criativas de artistas que deram sua vida e seu ser para estarem mais próximos de Deus; artistas são esses seres abnegados, renegados e desapercebidos por essa sociedade que disputa salões nobres para repousar seu cansaço por tamanho esforço ou castigo, na tentativa de parecer "culto".
As recusas anteriores para essa secretaria tão ambicionada pelos gaviões dessa selva de pedra em que habitamos ocorreram mesmo por entender que não há o que fazer com cultura diante dessa política de loteamento hoje tão em voga na vida pública brasileira.
Cultura, pensou Mário de Andrade, quando criou esse departamento, em seu primeiro parágrafo: "O departamento de cultura é o órgão destinado a criar, desenvolver e proteger quaisquer manifestações que interessem a cultura no município de São Paulo". Mas ainda há uma outra definição para cultura, não mais como regulamento, mas como grande significado de colocar uma sociedade e uma nação na hegemonia do mundo, com seus próprios dogmas, e, para isso, há que se dispensar os domínios desses pretensos mecenas, que jamais colocam a mão no bolso, porque essa casta de privilegiados a que o governo tem se curvado e os dogmas a que me referi não precisam desses senhores, precisam mesmo é dos verdadeiros artistas, que deixam para a humanidade seus talentos, seus legados e seus sonhos.
A arte africana de um continente agora dizimado e desamparado nos serve como exemplo de uma arte produzida por um povo, por uma diversidade única na história da humanidade, que mudou os rumos da arte ocidental e que está nos melhores e mais magníficos museus do mundo. Agora mesmo a França lhes dedica o seu mais novo e surpreendente museu --o Musée des Arts Premiers--, isso sim é cultura sem mecenas, sem pavões suntuosos posando nas revistas diante das suas mesas cheias de falsos cristais e louças cheias de colesterol para suas volumosas barrigas de mais de cem centímetros.
Tão pouco é cultura esses ocupadores dos espaços públicos posando de benfeitores das artes e dos museus construídos e edificados como marco dessa pobre e ao mesmo tempo rica cidade, ameaçados agora pelo projeto de uma torre de 125 metros de altura, assemelhando-se a um "pirocão", com o risco de ser implantado no topo de um edifício tombado da avenida Paulista, a pretexto de ver o mar e angariar recursos para o Masp, projeto este de um arquiteto considerado negligente com um dos patrimônios maiores da América Latina.
Mais que um alerta, este artigo é para dizer que não me acovardei diante do desafio dessa secretaria que deixo agora à sua disposição, para que o senhor possa nela internar o próximo incauto e para que possa nomear para esse espaço, tratado como uma pocilga, sem condições infra-estruturais, sem a menor possibilidade de respirar diante de suas precárias instalações, com seu mobiliário miserável, e, nos armários, como altares, vasinhos ditos de defesa e proteção, desses funcionários desesperançados com tanta injustiça, como que castigados nessas mesas miseráveis, nessas cadeiras rasgadas e tortas pelo uso de tantos anos, sem que lhes dêem um pouco de auto-estima, perspectiva e consideração.
Não, isso não é e nunca foi cultura! Isso é mesmo uma vergonha que os senhores políticos teriam que resolver antes de beneficiar esses gaviões sedentos, insaciáveis, independentemente de quem esteja ocupando o poder.
Não, isso não é cultura! Também não é cultura essas leis para privilegiados, demandadas por estes últimos e formuladas por legisladores levianos. O verdadeiro teatro foi aquele feito pelo TBC e pelo Teatro de Arena, entre outros, lembrando aqui, Cacilda Becker, Sérgio Cardoso, Walmor Chagas, Paulo Autran, Armando Bogus, Chico de Assis, Abdias do Nascimento, Plínio Marcos, Solano Trindade, Alberto Daversa e tantos e tantos outros, e não esse compadrio, como tão bem assinalou Antunes Filho, em um lúcido e muito claro artigo. Enquanto a Lei de Fomento paga 9 milhões de reais para grupos a quem se dispensou da obrigação legal de comprovar o uso e emprego dos recursos públicos, o Teatro Municipal não possui equipamentos mínimos para suas produções, e o seu diretor recebe pouco mais de 4.000 reais como salário.
O senhor pensa mesmo que isso é cultura? Não, senhor prefeito, repito aqui novamente, museu não é butique, já disse isso à secretária Claudia Costin, quando esta quis instalar o Museu do Imaginário do Povo Brasileiro na Casa das Rosas. E lhe digo que não se pode colocar dois museus com diferentes tipologias num só edifício, no caso, o da Prodam, que, além do mais, necessitará de muitos milhões, além do mais, inexistentes para sua mudança e novas instalações.
Quando a Generalitat Valenciana e o Ivam (Instituto Valenciano de Arte Moderna) me incumbiram de convidar o presidente Fernando Henrique Cardoso para abrir o 6º Simpósio Ibero-Americano de Cultura, como já o fizera o presidente do Uruguai, Júlio M. Sanguinetti, e, por impossibilidade de aceitá-lo, sugeri à minha velha amiga Consuelo Ciscar, hoje diretora do Ivam, que convidasse o prefeito Serra --o fiz na esperança de que ele visse a extraordinária pujança cultural da cidade de Valencia, não apenas o Ivan mas também a Casa da Ópera, o Museu da Ciência, o Oceanográfico e os projetos de um dos maiores arquitetos contemporâneos, Santiago Calatrava. Pensei também na forma de como Valencia está restaurando seu bairro gótico e seus deslumbrantes monumentos dos séculos 12 e 13. Guardava também a esperança de que essa visita lhe abrisse a mente, como inspiração para a cidade que o senhor acaba de receber para administrar.
A minha saída justifica-se por ter sido internado sem nenhuma infra-estrutura numa secretaria desprovida de recursos humanos, "apagando incêndios" deixados pelo meu antecessor, que eu, ingenuamente, desconhecia. Mas, como ele é ator, soube interpretar muito bem o seu papel. Deixo a secretaria porque o senhor não tomou conhecimento desses cem penosos dias de administração em que, graças a poucos e abnegados servidores, conseguimos realizar muitos projetos e ações, inclusive o catálogo "Brasileiro, Brasileiros", no qual encontra-se inserido um texto seu e a cujo lançamento, ontem, o senhor não compareceu, como programado.
Por outro lado, num enorme esforço pessoal, o maestro Jamil Maluf, convidado por mim a dirigir o Teatro Municipal, solitário, marcou esse início de gestão com uma temporada gratuita, de qualidade excepcional, apoiado tão somente em seus corpos estáveis, para o povo de São Paulo. A galeria Olido está apresentando duas exposições, uma delas com tema de interesse internacional e outra de caráter experimental e de ponta, renovada por um sistema de comunicação que nunca antes havia sido instalado. As demais linguagens artísticas presentes naquele complexo cultural (cinema, dança e música) seguem suas carreiras, com público crescente e cativo naquele espaço.
Devolvo-lhe o cargo com uma enorme frustração, não só minha mas também de minha reduzida equipe, a qual não foi possível ampliar para executar um projeto que orgulharia, seguramente, o seu governo e todos os paulistanos --a começar pela celebração dos 70 anos do departamento cultural desta cidade e o de suas casas de cultura, todos criados pelo genial paulistano Mário de Andrade, em 1935.
Devolvo-lhe ainda o seu pretenso honroso convite na expectativa de que poderia ter realizado a reforma da Biblioteca Municipal Mário de Andrade, a instalação e consolidação do Museu da Cidade, no Palácio das Indústrias, da Escola de Música, do Museu do Futebol, do Museu da Cultura Alimentar Brasileira e, no edifício da Prodam, do Museu de Arte Moderna, caso houvesse o patrocínio e o interesse de sua presidente.
Devolvo-lhe essa secretaria desejando que se faça mesmo o Museu da Criança na Cracolândia, mas rogo que não se esqueça de incluir, nesse espaço, essas crianças abandonadas ao infortúnio da sorte. Faça o Museu do Futebol, mas não esqueça a Pinacoteca Municipal, guardada na reserva técnica do Centro Cultural São Paulo. Entregue a OCA aos gaviões que têm enormes olhos sobre ela, mas não se esqueça do Museu do Folclore, que de lá foi arrancado, como também o Museu da Aeronáutica e a memória de Santos Dumont.
Coloque na Prodam o Museu de Arte Moderna e o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, duas instituições cujas gestões se opõem por suas naturezas, uma privada e outra pública. Faça-o, como se faz usualmente com o arranjo de um quarto de despejo, mas não toque com sua impropriedade no Museu Afro-Brasil, porque este é uma conquista de anos, resultante da grande dívida que o Brasil tem para com os seus negros e afro-descendentes que o construíram. Saiba que estaremos dispostos a defendê-lo com a mesma energia com que edificamos nossa nação em cinco séculos. Porque o Pavilhão Manoel da Nóbrega há muito tem sido ambicionado pelos donos da cultura oficial, que pensam que um museu dessa natureza não deveria estar em área tão nobre. No entanto, ele tem sido visitado nesses seis meses de existência por um enorme contingente de estrangeiros, brasileiros, brancos e, sobretudo, negros, não habituados a freqüentar tais espaços --para relembrar o quanto este país é devedor a esse nosso valoroso povo miscigenado.
Resolvi lhe escrever esta carta, aberta à imprensa, para que toda a população de São Paulo saiba, sim, que existia um projeto cultural que vinha sendo desenvolvido e já praticado em minha gestão, para não sair num silêncio elegante e cúmplice de circunstâncias e conjuntura alheias à minha vontade. Escrevi também esta carta para que ela fique registrada como documento e não caia no mesmo silêncio com que que eu mesmo, o embaixador Marcos Azambuja e a diplomata Helena Gasparian sofremos, ao perdermos o projeto do Ano 2005 do Brasil na França --e, sem pudor, as autoridades oficiais de plantão fizeram uso de seu conceito.
Escrevo esta carta em defesa de minha própria contribuição, que é pública e notória em prol da cultura brasileira, nesses meus 40 anos de abnegada dedicação de vida e de criação artística, que me tem valido como respaldo e aval e que deu origem, acredito, a seu próprio convite para integrar sua equipe de secretários.
Emanoel Araújo
Escultor, curador, cuny distinguished visiting professor of art, filho de Ogum, ex-secretário municipal de Cultura de São Paulo.
São Paulo, 10 de abril 2005."
04:15:11
"Devolvo-lhe este cargo com uma enorme frustração"
íntegra da carta envida à Folha de S. Paulo:
"Caminante no hay camino, se hace camino al andar
Antonio Machado, poeta espanhol
Ao saudoso Mário Covas, in memoriam
Carta aberta ao prefeito de São Paulo, José Serra, ou a propósito de uma renúncia
Senhor prefeito José Serra:
Quero aqui, através "dessas mal traçadas linhas", começando dessa forma prosaica, a lhe dizer do grande equívoco que foi minha nomeação, em face de um convite cheio de esperança feito a mim, antes de sua posse.
Eu mesmo já houvera recusado outros convites iguais ao seu, por entender que uma secretaria de cultura se faz com CULTURA, se faz conhecendo as causas e conseqüências do conteúdo maior que essa simples palavra tem como significado, se faz contextualizando na história, com a memória, com a vida pulsando a cada momento, sem achaques, sem privilégios.
Por que essa conquista tem de e deve ser um bem para todos, e eu falo de CULTURA, sem arremedos, sem o maneirismo desses poucos que pensam que são os privilegiados de Deus e que podem sentar-se numa poltrona de um teatro com toda sua arrogância e ignorância, sem se dar conta que a poltrona em que estão sentados está rota ou com o veludo que, de tão gasto, não tem mais cor, com seu estofo em péssimas condições, e se saciam, no intervalo, tomando champanhe para exibir suas roupas e bijuterias, já que as jóias verdadeiras ficaram bem guardadas nos cofres --usá-las num teatro no centro da cidade, ameaçados pela pobreza, seria, aí sim, uma ameaça aos tesouros da família.
Não, senhor prefeito, isso só não é cultura; cultura é o que foi produzido por uma verdadeira elite do saber e do conhecimento, erudito ou popular, através da qual esse repertório existe até hoje, depois de séculos de sua criação; cultura, portanto, são todas as ações criativas de artistas que deram sua vida e seu ser para estarem mais próximos de Deus; artistas são esses seres abnegados, renegados e desapercebidos por essa sociedade que disputa salões nobres para repousar seu cansaço por tamanho esforço ou castigo, na tentativa de parecer "culto".
As recusas anteriores para essa secretaria tão ambicionada pelos gaviões dessa selva de pedra em que habitamos ocorreram mesmo por entender que não há o que fazer com cultura diante dessa política de loteamento hoje tão em voga na vida pública brasileira.
Cultura, pensou Mário de Andrade, quando criou esse departamento, em seu primeiro parágrafo: "O departamento de cultura é o órgão destinado a criar, desenvolver e proteger quaisquer manifestações que interessem a cultura no município de São Paulo". Mas ainda há uma outra definição para cultura, não mais como regulamento, mas como grande significado de colocar uma sociedade e uma nação na hegemonia do mundo, com seus próprios dogmas, e, para isso, há que se dispensar os domínios desses pretensos mecenas, que jamais colocam a mão no bolso, porque essa casta de privilegiados a que o governo tem se curvado e os dogmas a que me referi não precisam desses senhores, precisam mesmo é dos verdadeiros artistas, que deixam para a humanidade seus talentos, seus legados e seus sonhos.
A arte africana de um continente agora dizimado e desamparado nos serve como exemplo de uma arte produzida por um povo, por uma diversidade única na história da humanidade, que mudou os rumos da arte ocidental e que está nos melhores e mais magníficos museus do mundo. Agora mesmo a França lhes dedica o seu mais novo e surpreendente museu --o Musée des Arts Premiers--, isso sim é cultura sem mecenas, sem pavões suntuosos posando nas revistas diante das suas mesas cheias de falsos cristais e louças cheias de colesterol para suas volumosas barrigas de mais de cem centímetros.
Tão pouco é cultura esses ocupadores dos espaços públicos posando de benfeitores das artes e dos museus construídos e edificados como marco dessa pobre e ao mesmo tempo rica cidade, ameaçados agora pelo projeto de uma torre de 125 metros de altura, assemelhando-se a um "pirocão", com o risco de ser implantado no topo de um edifício tombado da avenida Paulista, a pretexto de ver o mar e angariar recursos para o Masp, projeto este de um arquiteto considerado negligente com um dos patrimônios maiores da América Latina.
Mais que um alerta, este artigo é para dizer que não me acovardei diante do desafio dessa secretaria que deixo agora à sua disposição, para que o senhor possa nela internar o próximo incauto e para que possa nomear para esse espaço, tratado como uma pocilga, sem condições infra-estruturais, sem a menor possibilidade de respirar diante de suas precárias instalações, com seu mobiliário miserável, e, nos armários, como altares, vasinhos ditos de defesa e proteção, desses funcionários desesperançados com tanta injustiça, como que castigados nessas mesas miseráveis, nessas cadeiras rasgadas e tortas pelo uso de tantos anos, sem que lhes dêem um pouco de auto-estima, perspectiva e consideração.
Não, isso não é e nunca foi cultura! Isso é mesmo uma vergonha que os senhores políticos teriam que resolver antes de beneficiar esses gaviões sedentos, insaciáveis, independentemente de quem esteja ocupando o poder.
Não, isso não é cultura! Também não é cultura essas leis para privilegiados, demandadas por estes últimos e formuladas por legisladores levianos. O verdadeiro teatro foi aquele feito pelo TBC e pelo Teatro de Arena, entre outros, lembrando aqui, Cacilda Becker, Sérgio Cardoso, Walmor Chagas, Paulo Autran, Armando Bogus, Chico de Assis, Abdias do Nascimento, Plínio Marcos, Solano Trindade, Alberto Daversa e tantos e tantos outros, e não esse compadrio, como tão bem assinalou Antunes Filho, em um lúcido e muito claro artigo. Enquanto a Lei de Fomento paga 9 milhões de reais para grupos a quem se dispensou da obrigação legal de comprovar o uso e emprego dos recursos públicos, o Teatro Municipal não possui equipamentos mínimos para suas produções, e o seu diretor recebe pouco mais de 4.000 reais como salário.
O senhor pensa mesmo que isso é cultura? Não, senhor prefeito, repito aqui novamente, museu não é butique, já disse isso à secretária Claudia Costin, quando esta quis instalar o Museu do Imaginário do Povo Brasileiro na Casa das Rosas. E lhe digo que não se pode colocar dois museus com diferentes tipologias num só edifício, no caso, o da Prodam, que, além do mais, necessitará de muitos milhões, além do mais, inexistentes para sua mudança e novas instalações.
Quando a Generalitat Valenciana e o Ivam (Instituto Valenciano de Arte Moderna) me incumbiram de convidar o presidente Fernando Henrique Cardoso para abrir o 6º Simpósio Ibero-Americano de Cultura, como já o fizera o presidente do Uruguai, Júlio M. Sanguinetti, e, por impossibilidade de aceitá-lo, sugeri à minha velha amiga Consuelo Ciscar, hoje diretora do Ivam, que convidasse o prefeito Serra --o fiz na esperança de que ele visse a extraordinária pujança cultural da cidade de Valencia, não apenas o Ivan mas também a Casa da Ópera, o Museu da Ciência, o Oceanográfico e os projetos de um dos maiores arquitetos contemporâneos, Santiago Calatrava. Pensei também na forma de como Valencia está restaurando seu bairro gótico e seus deslumbrantes monumentos dos séculos 12 e 13. Guardava também a esperança de que essa visita lhe abrisse a mente, como inspiração para a cidade que o senhor acaba de receber para administrar.
A minha saída justifica-se por ter sido internado sem nenhuma infra-estrutura numa secretaria desprovida de recursos humanos, "apagando incêndios" deixados pelo meu antecessor, que eu, ingenuamente, desconhecia. Mas, como ele é ator, soube interpretar muito bem o seu papel. Deixo a secretaria porque o senhor não tomou conhecimento desses cem penosos dias de administração em que, graças a poucos e abnegados servidores, conseguimos realizar muitos projetos e ações, inclusive o catálogo "Brasileiro, Brasileiros", no qual encontra-se inserido um texto seu e a cujo lançamento, ontem, o senhor não compareceu, como programado.
Por outro lado, num enorme esforço pessoal, o maestro Jamil Maluf, convidado por mim a dirigir o Teatro Municipal, solitário, marcou esse início de gestão com uma temporada gratuita, de qualidade excepcional, apoiado tão somente em seus corpos estáveis, para o povo de São Paulo. A galeria Olido está apresentando duas exposições, uma delas com tema de interesse internacional e outra de caráter experimental e de ponta, renovada por um sistema de comunicação que nunca antes havia sido instalado. As demais linguagens artísticas presentes naquele complexo cultural (cinema, dança e música) seguem suas carreiras, com público crescente e cativo naquele espaço.
Devolvo-lhe o cargo com uma enorme frustração, não só minha mas também de minha reduzida equipe, a qual não foi possível ampliar para executar um projeto que orgulharia, seguramente, o seu governo e todos os paulistanos --a começar pela celebração dos 70 anos do departamento cultural desta cidade e o de suas casas de cultura, todos criados pelo genial paulistano Mário de Andrade, em 1935.
Devolvo-lhe ainda o seu pretenso honroso convite na expectativa de que poderia ter realizado a reforma da Biblioteca Municipal Mário de Andrade, a instalação e consolidação do Museu da Cidade, no Palácio das Indústrias, da Escola de Música, do Museu do Futebol, do Museu da Cultura Alimentar Brasileira e, no edifício da Prodam, do Museu de Arte Moderna, caso houvesse o patrocínio e o interesse de sua presidente.
Devolvo-lhe essa secretaria desejando que se faça mesmo o Museu da Criança na Cracolândia, mas rogo que não se esqueça de incluir, nesse espaço, essas crianças abandonadas ao infortúnio da sorte. Faça o Museu do Futebol, mas não esqueça a Pinacoteca Municipal, guardada na reserva técnica do Centro Cultural São Paulo. Entregue a OCA aos gaviões que têm enormes olhos sobre ela, mas não se esqueça do Museu do Folclore, que de lá foi arrancado, como também o Museu da Aeronáutica e a memória de Santos Dumont.
Coloque na Prodam o Museu de Arte Moderna e o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, duas instituições cujas gestões se opõem por suas naturezas, uma privada e outra pública. Faça-o, como se faz usualmente com o arranjo de um quarto de despejo, mas não toque com sua impropriedade no Museu Afro-Brasil, porque este é uma conquista de anos, resultante da grande dívida que o Brasil tem para com os seus negros e afro-descendentes que o construíram. Saiba que estaremos dispostos a defendê-lo com a mesma energia com que edificamos nossa nação em cinco séculos. Porque o Pavilhão Manoel da Nóbrega há muito tem sido ambicionado pelos donos da cultura oficial, que pensam que um museu dessa natureza não deveria estar em área tão nobre. No entanto, ele tem sido visitado nesses seis meses de existência por um enorme contingente de estrangeiros, brasileiros, brancos e, sobretudo, negros, não habituados a freqüentar tais espaços --para relembrar o quanto este país é devedor a esse nosso valoroso povo miscigenado.
Resolvi lhe escrever esta carta, aberta à imprensa, para que toda a população de São Paulo saiba, sim, que existia um projeto cultural que vinha sendo desenvolvido e já praticado em minha gestão, para não sair num silêncio elegante e cúmplice de circunstâncias e conjuntura alheias à minha vontade. Escrevi também esta carta para que ela fique registrada como documento e não caia no mesmo silêncio com que que eu mesmo, o embaixador Marcos Azambuja e a diplomata Helena Gasparian sofremos, ao perdermos o projeto do Ano 2005 do Brasil na França --e, sem pudor, as autoridades oficiais de plantão fizeram uso de seu conceito.
Escrevo esta carta em defesa de minha própria contribuição, que é pública e notória em prol da cultura brasileira, nesses meus 40 anos de abnegada dedicação de vida e de criação artística, que me tem valido como respaldo e aval e que deu origem, acredito, a seu próprio convite para integrar sua equipe de secretários.
Emanoel Araújo
Escultor, curador, cuny distinguished visiting professor of art, filho de Ogum, ex-secretário municipal de Cultura de São Paulo.
São Paulo, 10 de abril 2005."
0 Comments:
Postar um comentário
<< Home