Antro Particular

11 setembro 2006

RENÉE GUMIEL: lamento de saudade

2001. Reestréia de Bacantes, Teatro Oficina. Ensaios que chegavam quase ao amanhecer. Criatividade em período integral. Transformações, atualizações. E no meio das quatro horas do espetáculo criado por Zé Celso, dentre as dezenas de pessoas envolvidas, uma em especial chamava-me atenção. Renée Gumiel permanecia durante todo o tempo quieta, sentada em um canto da cena, observando. Assim todos os dias. Assim sempre.

Havia em Renée certo ar de sabedoria vivida, de disponibilidade marota, e também fogo nos olhos insistentes em corrigir, criar, participar, ainda que em sua poltrona. Lá estava ela, mais viva e mais presente que muitos dos iniciantes atores em cena. Em sua espera, em seu silêncio conseguia ser mais presente que qualquer outro.

A dançarina francesa de sorriso franco e aberto era então franzina, dissimuladamente frágil, e com o passar do tempo via-se que seu corpo encolhera ainda mais. E do meu ângulo de visão, no segundo andar da platéia e por vezes no terceiro, mais parecia uma criança esperando sua vez de entrar na brincadeira. Renée era uma das figuras, junto com Zé Celso, que me fazia congelar o tempo e perceber: estou no Teatro Oficina!

Nos ensaios de Bacantes o seu momento, quando de repente Marcelo Drummond a levantava nos braços e como em um abraço dançado oferecia-lhe o centro do corredor-palco. O coro se acalmava, dava-lhe espaço. E algo então aconteceu... Sorrindo pro teatro vazio, como que antevendo o público e a emoção que causaria. E acho que foi tomados por esse encantamento que em um gesto criativo uníssono Fernando Coimbra, Cibele Forjaz e eu acabamos apagando as luzes do teatro, e Renée, personificando Nanã Buruku, dançava os cânticos do Orixá iluminada apenas por uma projeção de Lua Cheia em céu escuro e nuvens.

Renée flutuava e levava o público consigo.

Mas Nanã, deusa jeje da lama, região do Daomé, hoje República do Benin, é também senhora da vida e da morte. Temida em lendas e cultos. E como que por ironia, é a ela quem coube a decisão de levar de nós a criança-dançarina.

E se nada podemos fazer, ao menos sabemos como reencontrá-la. Está lá, como sempre, no teatro. Não no canto ou em uma poltrona confortável. Está além. Depois dos meus segundo e terceiro andares. Depois do teto móvel. Pendurada na escuridão da noite em forma redonda de lua brilhante. Observando, como sempre. E esperando o momento de poder voltar a brincar.

Um aperto no peito. O vazio. O céu.

Saluba Nanã Gumiel!

2 Comments:

  • Perdemos não só uma artista. Foi-se um ícone, um marco, um modelo. O Teatro Oficina abre suas portas, agora, com mais tristeza em seus corações, porém com mais felicidade em suas palavras e atuações. Afinal, por lá passou Renée Gumiel.
    Para ela, meus aplausos!

    By Anonymous Anônimo, at 12:34 PM  

  • Adorei o texto.
    Salve!
    Bjs

    By Anonymous Anônimo, at 4:35 PM  

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