Antro Particular

10 agosto 2006

JOHN NESCHLING: a capacidade de ir além dos preconceitos


Em tempos de guerra, bombardeios, copos estraçalhados pela intolerância religiosa, ocupações, torturas, terrorismo urbano... Bom, nos dias de hoje, nada melhor que esquecer os problemas do dia-a-dia, contundentemente presentes, e permanecer alheios e distantes do caos global. Para muitos é assim... E quem não gosta de música? Certamente a expressão artística mais determinante em nossa cultura. Do funk empobrecido de argumento ao sertanejo romântico distante das raízes e mais próximo ao pop-brega, o brasileiro usa a música como escapismos da rotina e da reflexão. Escolhas. Tudo, em algum momento, passa por isso. E em tempos de guerra... O diretor artístico e regente titular da Osesp, John Neschling, sobe ao palco da Sala São Paulo para nos oferecer a Sinfonia nº13 em si menor, Babi Yar, de Dmitri Shostakovich.

O compositor russo compôs a sinfonia em 1962 a partir de poemas de Ievtuchenko sobre o massacre de judeus na então União Soviética, época da Segunda Guerra. Os mesmos judeus que agora de Israel atacam o Líbano impiedosamente. Inevitável paralelo.

A composição de Shostakovich oferece como argumento maior a impossibilidade de censura e aniquilação do Humor como arma frente aos ideais tortos da chacina racista. Contraponto interessante ao Controle e Poder. Sigo a proposta, e deixo os dramas das guerras para outro momento. Voltemos à Sala São Paulo...

Misturadas aleatórias dentre o público, senhoras e seus casacos de pele, pérolas, laquês, exibem o catálogo-programação da Osesp ao mesmo tempo em que circensemente equilibram suas bolsas Louis Vuitton, celulares de último modelo e taças de champanhe. Circulam, conversam cordialmente. Ignoram o entorno. Acomodam-se em suas poltronas, permanecem imóveis e em silêncio durante toda a apresentação.

Mas há corpos estranhos em ambiente sagrado. Casais. Sem catálogos, devorando salgadinhos que insistem em se prender, aos farelos, em suas roupas feias e surradas. Falantes, inconvenientes, inquietos em suas poltronas em constante ruir durante toda a apresentação.

Enquanto a orquestra é perfeccionista e rigidamente comandada por Neschling, este é o universo ao meu redor. E o que no começo era incômodo, torna-se divertido. Acompanhar a emoção sincera dos invasores, o brilho nos olhos, as trocas de carícias e beijos apaixonados.

Ao final, as senhoras e maridos dignos já se retiraram após o burocrático aplauso e visível correria para não se misturarem aos anônimos junto aos manobristas. Dois minutos de aplauso. Três. Quatro. Sete, quando os restantes cessam. E o barulho raivoso da saída do teatro, aos comentários diversos, quase sempre entusiasmado tentando compreender o que ouviram e leram na tradução projetada.

Em tempo de guerra, Neschling e a Osesp oferecem mais do que uma sinfonia reflexiva sobre a crueldade da intolerância. Entregam ao homem comum esperança pelo divertimento casual sugestionando o espectador à reflexão inesperada.

E enquanto as senhoras comportadas da sociedade, em suas salas burguesas e restaurantes chiques, contarão às amigas que assistiram a outro concerto, os barulhentos dirão sorrindo nas mesas dos bares suburbanos, churrascarias e forrós que a música era “muito louca”, “o cara é doido”, “não entendi nada”, “era a estória de um russo que matava judeu”... Duas frases em meio ao tumulto da saída: “já tinha assistido em Nova Iorque”, “eles podiam tocar isso lá no bairro”. Humor, a grande arma contra o empobrecimento e endurecimento da alma.

... Conclua você mesmo!

1 Comments:

  • tIRE O HOMEM DO SEU MEIO COMUM E ELE AO SE SURPREENDE TE SURPREENDERÁ. PRECISAMOS NOS REINVENTAR, TRANSITAR ENTRE ESSES E AQUELES. ASSIM PODEMOS REFLETIR MELHOR SOBRE O MEIO EM VIVEMOS - uMA NOVIDADE VALE MAIS QUE MIL DELÍCIAS REPETIDAS.

    By Anonymous Anônimo, at 11:56 PM  

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