VIRADA CULTURAL 2008 SP
A Virada Cultural 2008 deve ser registrada como sendo o ano das mulheres. Rostos novos, circulantes na cena alternativa, outros já reconhecidos e mesmo consagrados, ocuparam os palcos espalhados pela cidade. Em um ano que contara com a presença de Gal Costa, em plena Av. São João, muito pôde ainda ser descoberto.
Gal traduziu em si um resumo do que havia de novo nos outros palcos. Realizando um corajoso show intimista, tendo apenas um violão por acompanhante, conquistara o público imediatamente com o carisma de quem tem décadas de estrada, interpretando grandes sucessos de sua carreira e os melhores nomes da MPB. E o que poderia ser óbvio se construíra sensível ao propor uma relação com o nome do evento aos movimentos musicais. Da Bossa ao Tropicalismo, deste aos novos compositores, retratou didaticamente um eficiente recorte historiográfico da canção, oferecendo ao público mais do que um show, uma aula sobre a cultura nacional.
Desta maneira, Gal relembra sua importância na cena brasileira. Se é reverenciada com a primeira voz, é porque sua interpretação não se limitara às canções, mas à tradução de um movimento estético que redesenhava o país de maneira provocante e original. Se antes dela Elis, fora a voz da menina baiana descalça que modernizara nossa expressão.
Em outros palcos, outras meninas. Descalças ou não, o que se percebe é a falta de uma expressividade que dialogue com o contemporâneo. Não estamos mais nos anos de chumbo. Não há mais censores oficiais sentados nas platéias. E tanto compositores quanto intérpretes precisam reavaliar suas participações numa cena conturbada por outras questões: pirataria, Internet, banalização do experimento, mercantilização de idéias, ausência de ideologias amplas.
O esvaziamento de valores conduz as novas intérpretes à copia, muitas vezes talentosa até, das cantoras de outrora e recentes sucessos de mídia. Vozes doces, melodias corretas e caretas, expõe o Maria Rita ou Sandy como fórmula para aceitação. O mais triste é notar o quanto isso funciona.
Algumas outras caras, contudo, abstraem-se desse mecanismo e confrontam a mesmice estética com originalidade e personalidade.
Não é por pouco que Marina de la Riva recebera, em 2007, o prêmio de cantora revelação. Como definir a junção de samba, jazz latino, música cubana, MPB, cantigas infantis? Como catalogar seu trabalho? Em qual prateleira deve ser exposto o CD? A boa invencionice não necessita de rotulações. É música, e das melhores. Doce e forte, sensual e diva, Marina desafia os desavisados a abandonarem conceitos pré-determinados e simplesmente se entregarem à escuta e descoberta de outros caminhos.
No mesmo palco, na Av. Ipiranga, Andréia Dias supera novamente a obviedade numa deliciosa mistura entre samba paulista, punk rock, pop rock, brega romântico, apresentando uma pessimista visão feminista sobre os sentimentos recheando-a com ironia e variação de estilo.
O inclassificável talvez seja o epicentro entre Marina e Andréia. Marina, elegante, clássica; Andréia, escrachada, vigorosamente juvenil. Promessas de que há sim esperança para a música brasileira.
E na categoria “inclassificável”, é preciso lembrar dos trabalhos de Vanessa Bumagny e Helô Ribeiro. Já madrugada, o espaço dos Satyros 2 dava sua participação à Virada Cultural, através do projeto Satyros Sons e Furyas. Se é possível modernizarmos o que de melhor houve no tropicalismo e anos 80, então o Sons e Furyas sai à frente explodindo inquietação e muita provocação. Letras e melodias próprias, somadas às poesias de André Sant’Anna, fazem do show-recital, sem dúvida alguma, a melhor cena experimental da música contemporânea. É impossível não se entregar ao escracho enquanto muito é seriamente desconstruído dessa imensa indústria sentimentalóide romântica que nos contamina a todo instante.
Por fim, ainda sobre o que tivemos e teremos de melhor, há a obra de Nara Leão revisitada por Fernanda Takai. Primorosa apropriação para desapropriação em nome de um novo tempo. Fernanda nos brinda com o repertório magistral de Nara, ao mesmo tempo em que a reconstrói moderna e viva. O que se ouve não é uma disputa histórica ou os meios de gerar comparações. Fernanda é Nara e é si mesma. É outra e a outra. É prova de ser possível reencontrar o passado elaborando o presente. Um grande projeto de Nelson Motta. Perspicácia ímpar desse que hoje explicita a saudade de nossa cultura possuir o artista como fundamento de inquietação.
Inquieto como Zé Celso ao piano, dentre as árvores do centro de São Paulo, revelando a música como sua primeira paixão. Que o teatro feito por ele é música, sabemos. Que a vida é dança, também. Trazê-lo às ruas travestido de bom moço, é respeitar a origem das coisas. Zé é a essência da inquietude calada no passado. Assisti-lo livre, sorridente, aceito artista, é um positivo sinal de evolução. E se no palco a cena ganha musicalidade, ali, no piano, a poesia das notas iam além do som para somar à figura do pianista uma representação mítica do sublime.
A Virada Cultura passou. 24 horas necessárias por incontáveis aspectos. Ótimos que tenhamos duzentos ou mais envolvidos. Mas ainda espero, num futuro próximo, assistir a uma Virada que vá além do trocadilho temporal, que seja um consciente movimento de elaborada inquietação, a manifestação de um suspiro outro na construção cultural e na percepção do público. Talvez diminuir para melhor oferecer seja um bom propósito. Estamos no caminho certo, sem dúvida alguma.
Gal traduziu em si um resumo do que havia de novo nos outros palcos. Realizando um corajoso show intimista, tendo apenas um violão por acompanhante, conquistara o público imediatamente com o carisma de quem tem décadas de estrada, interpretando grandes sucessos de sua carreira e os melhores nomes da MPB. E o que poderia ser óbvio se construíra sensível ao propor uma relação com o nome do evento aos movimentos musicais. Da Bossa ao Tropicalismo, deste aos novos compositores, retratou didaticamente um eficiente recorte historiográfico da canção, oferecendo ao público mais do que um show, uma aula sobre a cultura nacional.
Desta maneira, Gal relembra sua importância na cena brasileira. Se é reverenciada com a primeira voz, é porque sua interpretação não se limitara às canções, mas à tradução de um movimento estético que redesenhava o país de maneira provocante e original. Se antes dela Elis, fora a voz da menina baiana descalça que modernizara nossa expressão.
Em outros palcos, outras meninas. Descalças ou não, o que se percebe é a falta de uma expressividade que dialogue com o contemporâneo. Não estamos mais nos anos de chumbo. Não há mais censores oficiais sentados nas platéias. E tanto compositores quanto intérpretes precisam reavaliar suas participações numa cena conturbada por outras questões: pirataria, Internet, banalização do experimento, mercantilização de idéias, ausência de ideologias amplas.
O esvaziamento de valores conduz as novas intérpretes à copia, muitas vezes talentosa até, das cantoras de outrora e recentes sucessos de mídia. Vozes doces, melodias corretas e caretas, expõe o Maria Rita ou Sandy como fórmula para aceitação. O mais triste é notar o quanto isso funciona.
Algumas outras caras, contudo, abstraem-se desse mecanismo e confrontam a mesmice estética com originalidade e personalidade.
Não é por pouco que Marina de la Riva recebera, em 2007, o prêmio de cantora revelação. Como definir a junção de samba, jazz latino, música cubana, MPB, cantigas infantis? Como catalogar seu trabalho? Em qual prateleira deve ser exposto o CD? A boa invencionice não necessita de rotulações. É música, e das melhores. Doce e forte, sensual e diva, Marina desafia os desavisados a abandonarem conceitos pré-determinados e simplesmente se entregarem à escuta e descoberta de outros caminhos.
No mesmo palco, na Av. Ipiranga, Andréia Dias supera novamente a obviedade numa deliciosa mistura entre samba paulista, punk rock, pop rock, brega romântico, apresentando uma pessimista visão feminista sobre os sentimentos recheando-a com ironia e variação de estilo.
O inclassificável talvez seja o epicentro entre Marina e Andréia. Marina, elegante, clássica; Andréia, escrachada, vigorosamente juvenil. Promessas de que há sim esperança para a música brasileira.
E na categoria “inclassificável”, é preciso lembrar dos trabalhos de Vanessa Bumagny e Helô Ribeiro. Já madrugada, o espaço dos Satyros 2 dava sua participação à Virada Cultural, através do projeto Satyros Sons e Furyas. Se é possível modernizarmos o que de melhor houve no tropicalismo e anos 80, então o Sons e Furyas sai à frente explodindo inquietação e muita provocação. Letras e melodias próprias, somadas às poesias de André Sant’Anna, fazem do show-recital, sem dúvida alguma, a melhor cena experimental da música contemporânea. É impossível não se entregar ao escracho enquanto muito é seriamente desconstruído dessa imensa indústria sentimentalóide romântica que nos contamina a todo instante.
Por fim, ainda sobre o que tivemos e teremos de melhor, há a obra de Nara Leão revisitada por Fernanda Takai. Primorosa apropriação para desapropriação em nome de um novo tempo. Fernanda nos brinda com o repertório magistral de Nara, ao mesmo tempo em que a reconstrói moderna e viva. O que se ouve não é uma disputa histórica ou os meios de gerar comparações. Fernanda é Nara e é si mesma. É outra e a outra. É prova de ser possível reencontrar o passado elaborando o presente. Um grande projeto de Nelson Motta. Perspicácia ímpar desse que hoje explicita a saudade de nossa cultura possuir o artista como fundamento de inquietação.
Inquieto como Zé Celso ao piano, dentre as árvores do centro de São Paulo, revelando a música como sua primeira paixão. Que o teatro feito por ele é música, sabemos. Que a vida é dança, também. Trazê-lo às ruas travestido de bom moço, é respeitar a origem das coisas. Zé é a essência da inquietude calada no passado. Assisti-lo livre, sorridente, aceito artista, é um positivo sinal de evolução. E se no palco a cena ganha musicalidade, ali, no piano, a poesia das notas iam além do som para somar à figura do pianista uma representação mítica do sublime.
A Virada Cultura passou. 24 horas necessárias por incontáveis aspectos. Ótimos que tenhamos duzentos ou mais envolvidos. Mas ainda espero, num futuro próximo, assistir a uma Virada que vá além do trocadilho temporal, que seja um consciente movimento de elaborada inquietação, a manifestação de um suspiro outro na construção cultural e na percepção do público. Talvez diminuir para melhor oferecer seja um bom propósito. Estamos no caminho certo, sem dúvida alguma.
fotografias e design gráfico Patricia Cividanes.
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