Antro Particular

28 fevereiro 2008

A COMÉDIA GREGA: A tragicomédia e a facilidade em nos manter imbecil

Em seu mais recente trabalho, A Comédia Grega, a Companhia dos Pássaros perde uma boa oportunidade para dilacerar um tema um tanto indigesto: que a percepção do trágico perdera seus aspectos no nosso tempo e a importância de entendermos a história como reflexo de nossas ações.

O espetáculo, caminhando pela obviedade dos trocadilhos e acreditando estarem neles suas melhores conquistas, abusa de nomes e sonoridades de palavras gregas ou características dos primórdios da cena trágica, revelando, ao fim, não ter muito mais o que dali ser apreendido. O objetivo nitidamente é a mera diversão do espectador. Distorções morais sobre o homossexualismo e a vaidade feminina valorizam os risos fáceis, com a presunção de se revelar interessante no juntar de tantos clichês.

As comédias sempre conquistam quase imediatamente o público. Reconhecimento e empatia instantâneos. Mas talvez seja essa facilidade cega que mais distancie a produção atual do surgimento de bons comediólogos. Sucesso versus profundidade?

A tragicomédia surge na literatura grega após a ida dos comediólogos e trágicos, sobretudo atenienses, para a Macedônia. O afastamento da capital Atenas e das Grandes Dionisíacas (festivais de tragédias), determina aos temas e personagens maior aproximação do cotidiano. Surgem, então, peças mais voltadas à paródia de costumes, e, dentre as questões abordadas, também a tragédia é enquadrada numa trama cômica.

De lá pra cá muito e nada mudara. Os tempos são outros e a humanidade vivenciara do cristianismo a duas guerras mundiais, pestes e dezenas de genocídios, das monarquias à ascensão e queda da utopia socialista, e absorvemos com facilidade o riso sobre o trágico, levando-nos a perder a capacidade de verdadeiramente o enxergar.

Confundimos nossos dramas, tristezas e derrotas pessoais e sociais como sendo tragédias inquestionáveis. No entanto, o trágico exibe sua face na elaboração fatalista de sua trajetória. E sobre isso somos midiaticamente instruídos a compreender, desde o berço, que a fatalidade se dá também na nossa falta de ação. As coisas são como são e nada mais! Será?

Compramos o trágico na ausência de nossas posições sobre os fatos, e lidamos com as devidas conseqüências e nossos erros psicanaliticamente perdoados pelo "a vida é assim mesmo".

Se, por um lado, a tragicomédia renovou o sabor cômico do tratar o social, por outro, escondeu-nos da responsabilidade de sermos permanentemente protagonistas e não meros e passageiros figurantes.

Ao optar pelo riso óbvio do trocadilho agradável, a Companhia dos Pássaros consolida a esperança cristã de estar em mãos maiores as soluções para nossas fatalidades. Riamos, então, é o que nos resta, pois não nos cabe mudar o que de fato é nossa tragédia. Aqueçamos nossas almas com estrondosas gargalhadas enquanto reaprendemos a nos divertir com a imutabilidade dos nossos defeitos.

A Comédia Grega não vai além do título e sua promessa não tem, ao fim, a menor graça. Perdendo uma boa oportunidade, sim, para nos lembrar que rir não é o melhor remédio, ainda que o ditado insista em nos convencer, e sim o arregaçar as mangas e se enfrentar ao espelho.

4 Comments:

  • Prezado Ruy Filho,
    Realmente você escreve bem e tem bons conhecimentos sobre história antiga.
    Se o teatro apenas se resumisse a uma transposição formal para os palcos dos conceitos teóricos elaboradamente concebidos como forma de educar o espectador, aí o espetáculo 'A Comédia Grega' seria um espetáculo bastante ruim e sem propósito.
    Por outro lado, creio que você seria um excelente diretor, dramaturgo.
    Eu acredito, como espectador e, sobretudo, como ator, que o produto teatral, dentre as suas diversas funções, se presta também a divertir. E a transformar, através dos sentidos. Uma pessoa que ri é uma pessoa mais feliz, que tem menos doenças, descarrega suas tensões cotidianas e estressantes. Enfim, essa é a função - e muito importante - social da comédia que você nomeia óbvia, clichezada e de riso fácil.
    Recomendo, por sua vez, aos de riso difícil ou de pouco ou quase nenhum riso que saiam de sua profundidade crítica - a qual, confesso, por muito tempo já visitei - e venham conhecer a "obviedade" das comédias despretenciosas e "banais", deixando ser atingidos por seu objetivo primeiro, que é a de simplesmente - e nada mais - divertir!
    Ass: Daniel Kronenberg!

    By Blogger Corifeu de Atenas, at 11:42 PM  

  • Oi, Daniel,

    Antes é preciso esclarecer um detalhe: não sou contra a comédia e não me incomodam os risos. Não trato a peça por tais ângulos parciais. Vejo no cômico o subterfúgio delicado da intromissão, da reação ao comodismo e aos sistemas como um todo. Apenas na comédia é possível ir verdadeiramente profundo nas questões simultaneamente ao encontro com os valores morais do espectador por sua facilidade de aceitação não-crítica. Por outros caminhos, seja o trágico, o dramático ou o épico, a consciência do público é convidada a participar objetivamente, e aí a comunicação se torna sempre mais delicada e complicada. Portanto, não se trata de ser o espetáculo uma comédia, a questão. Falo sobre a perda da possibilidade em se aproveitar a abertura e entrega do público para traduzir discursos em indagações.

    Um outro detalhe, ainda, sobre seu comentário, é mercedor de esclarecimento.

    Em momento algum defendo a cena como instrumento de manifestações de "conceitos teóricos elaboradamente concebidos como forma de educar o espectador". Jamais defenderia isso. Ao contrário!

    Para mim o palco é o espaço destinado às deseducações morais, éticas, religiosas, sociais e culturais. No discurso da cena e nas propostas eleitas para a construção de um espetáculo, vale tudo. E compreender o teatro como mais um instrumento educacional é submetê-lo aos valores quais a arte incansavelmente luta por romper.

    O palco é sim reflexo do tempo em que se vive, e mais ainda por isso questiono a opção pelo riso fácil.

    Em tempos de absoluto niilismo ideológico (e não faço aqui apologia a nenhum especificamente, já que todos possuem suas características de perversão), abandonar a possibilidade de, ao menos, conduzir o espectador ao confronto com suas certezas, é, de certa maneira, validar o mundo como está. Se nada questionamos, se nada nos inquieta, então é porque está tudo bem...

    A arte se manifesta nesse eterno inconformismo romântico, sobrepujando ideologias em estética. E nada há de errado em estetizar o riso, apenas na opção em torná-lo óbvio.

    Como se tirar as pessoas de casa para mera diversão fosse suficiente para deixá-las feliz (uma felicidade burguesa, permitida dentre as regras, é preciso dizer!), enquanto o mundo lá fora continua sua trajetória de anulação do sujeito e da vida.

    Felicidade por um momento? Tudo bem, muitos defendem isso. Mas até que o espectador ultrapasse a porta do teatro e reveja o mundo tal qual é enquanto caminha até o carro. Isso se o carro ainda estiver lá...

    Abraços,
    e valeu pelo comentário.
    A democracia se consolida na diferença... E isso é sempre muito bom.

    RUY FILHO

    By Blogger Ruy Filho, at 3:44 PM  

  • bah... puta reflexão!

    adorei

    By Blogger Daniel Olivetto, at 5:56 PM  

  • Me amarrei deu um nó na cabeça...
    Good Vibes 4US

    By Blogger Tome Chá de Fita, at 4:36 PM  

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