DESFIGURA: alguns gritos precisam ser sentidos e não ouvidos
DesFigura, espetáculo em cartaz no espaço dos Parlapatões, propõe trazer o universo conturbado de Francis Bacon, um dos pintores mais interessantes e inquietantes da modernidade aos dias atuais. Em cena, Edi Botelho elabora, diametralmente, contraposições entre corpo e fala, narrando pensamentos e sensações, valorizando as minúcias e particularidades que fizeram do artista irlandês personagem único de seu tempo (1902-1992).
Dois são os princípios explorados: a construção de uma atmosfera que represente o interior do personagem e o discurso de uma fala que vai além da retórica para se aproximar da persona do artista. E se dois são os valores constituintes da cena, elege-se, simultaneamente, duas outras inquietações: como dar conta de representar a pintada desfiguração do corpo humano e o universo sensorial de Bacon?
Tarefa difícil, o trabalho esbarra na condição da limitação dos corpos em ir além de suas capacidades físicas. Não é possível desfigurar um rosto além da realização simplista de uma careta, ou torcer um tronco além do curvar e expandir tais como conhecemos. Bacon problematizara a identidade do homem moderno através da deformação dos rostos, membros, posturas, em violenta ação pictórica, na qual as cores servem aos berros e desejos de destruição, assistindo-o gerar e sobreviver a duas guerras mundiais. São personagens de uma história híbrida entre a realidade servil em um mundo desprovido de valores e a consciência psicanalítica levada ao desespero e solidão. Em DesFigura, não poderia ser outro o caminho que a aproximação entre a dança e o corpo mídia (como nos ensinam Helena Katz e Christine Greiner). Contudo, volto a insistir, limitado a suas possibilidades reais torna-se ingênuo quando comparado aos trabalhos de Bacon, esses violentamente mais poéticos e cheios de caminhos subjetivos.
É comum e inerente ao objeto escolhido (o corpo) que tal limitação incomode. Frustra-nos à sensação de déjà vu dos movimentos, das palavras corporificadas, das repetições gestuais, dos códigos já tão banalizados por tantos e tantos usos. Frustra-nos a percepção de não poder ser outra coisa, a incapacidade em atingir a cópia plena. E terminamos por assumir o assistido como resultado possível meramente.
Há aí o afastamento perigoso nessa aceitação conformista ao destituirmos da crítica aprimoramento de seu olhar. A partitura corporal elaborada para representar a desconfiguração do humano proposta por Bacon, quase sempre se apresenta como mera torção física. Bacon não discursava simplesmente pelo destroçar das formas, e sim destas como representações do interior do Homem do século XX. Na maneira como as partituras de DesFigura surgem, limitamo-nos a assistir a deformidade do corpo e não do humano em si. Entender o humano é ir além da matéria, é desfacelar a casca para chafurdar ao íntimo daquilo que nos torna comuns em nossas diferenças. A obviedade da dança calculada, da coreografia duplicada e seguida, da imprecisão do preciso, faz com que a narrativa corporal, a transformação baconiana limite-se ao desenho da forma, da superfície. E estar na superfície é, via de regra, determinar-se superficial.
A segunda questão, o universo de Bacon, envolve outras tantas particularidades técnicas. Muitos são os espetáculos em cartaz e textos recentes debruçados sobre uma personalidade – histórica ou recente – como estratégia de discutir o Homem e a contemporaneidade. Todavia, há de se diferenciar a amplificação de uma persona para a linguagem teatral e a transformação do sujeito em personagem dramático.
Em DesFigura, assim como boa parte dos espetáculos em cartaz que se utilizam de tal premissa, não se vai além do próprio mostrar ou apresentar o homem-artista-personalidade Francis Bacon. Junta-se uma pitada de sua estética (ineficiente e reducionista), a pensamentos soltos em tom reflexivo, coleções de frases e leves intromissões da biografia íntima. Tudo certo, não fosse esse tratamento uma abordagem simplista da personagem. Não se encontra Bacon no contar a vida de Bacon. Ao contrário, desta maneira limita-o a leitura de um (no caso o dramaturgo) sem conduzir qualquer encontro mais profundo e sensivelmente particular com seu universo que o interprete diferentemente.
Faze-lo personagem não significa processar o seu encontro com o espectador. Bacon não se limita a pensamentos e estética, mas a soma de ambos decodificada sob a perspectiva da percepção do observador. Apresentar Bacon seria torná-lo signo sensível, no sentido mais íntimo e pessoal do público. Faze-nos sentir as emoções, sensações, inquietações do artista sem, necessariamente, figurar o próprio ou seus quadros para manipular nossa compreensão. Do jeito que DesFigura, e tantos outros propõem, sobra ao espectador o ouvir uma história e assistir a um personagem sem qualquer possibilidade concreta de vivenciar aquilo tudo apresentado. É literatura dramática, dramaturgia pura. O teatro, no então, pode e deve ir muito além disso...
DesFigura pertence, enfim, a gama dos espetáculos que se apropriam de complexas estruturas de pensamento, estética e comportamento, para recria-las em personagens dramáticos, sob o prisma acadêmicos, construídos numa ingênua tentativa de dar conta de todas as camadas que envolvem tais personalidades. Edi Botelho vai bem nesse encalço. Mas não chega a assustar. Assistimo-no sem deslumbramento ou fascinação, sem susto ou entorpecimento. Nada que nos leve a uma transformação incômoda, a uma desconfiguração de nossas certezas, à destruição de nossos íntimos, a trazer para nós um pouco do Bacon tão insistentemente personificado em cena. Em DesFigura , portanto, ficamos mais uma vez frente a frente a atores e seus esforços, mas muito longe de seremos invadidos por Bacon e seus berros definitivos.
Dois são os princípios explorados: a construção de uma atmosfera que represente o interior do personagem e o discurso de uma fala que vai além da retórica para se aproximar da persona do artista. E se dois são os valores constituintes da cena, elege-se, simultaneamente, duas outras inquietações: como dar conta de representar a pintada desfiguração do corpo humano e o universo sensorial de Bacon?
Tarefa difícil, o trabalho esbarra na condição da limitação dos corpos em ir além de suas capacidades físicas. Não é possível desfigurar um rosto além da realização simplista de uma careta, ou torcer um tronco além do curvar e expandir tais como conhecemos. Bacon problematizara a identidade do homem moderno através da deformação dos rostos, membros, posturas, em violenta ação pictórica, na qual as cores servem aos berros e desejos de destruição, assistindo-o gerar e sobreviver a duas guerras mundiais. São personagens de uma história híbrida entre a realidade servil em um mundo desprovido de valores e a consciência psicanalítica levada ao desespero e solidão. Em DesFigura, não poderia ser outro o caminho que a aproximação entre a dança e o corpo mídia (como nos ensinam Helena Katz e Christine Greiner). Contudo, volto a insistir, limitado a suas possibilidades reais torna-se ingênuo quando comparado aos trabalhos de Bacon, esses violentamente mais poéticos e cheios de caminhos subjetivos.
É comum e inerente ao objeto escolhido (o corpo) que tal limitação incomode. Frustra-nos à sensação de déjà vu dos movimentos, das palavras corporificadas, das repetições gestuais, dos códigos já tão banalizados por tantos e tantos usos. Frustra-nos a percepção de não poder ser outra coisa, a incapacidade em atingir a cópia plena. E terminamos por assumir o assistido como resultado possível meramente.
Há aí o afastamento perigoso nessa aceitação conformista ao destituirmos da crítica aprimoramento de seu olhar. A partitura corporal elaborada para representar a desconfiguração do humano proposta por Bacon, quase sempre se apresenta como mera torção física. Bacon não discursava simplesmente pelo destroçar das formas, e sim destas como representações do interior do Homem do século XX. Na maneira como as partituras de DesFigura surgem, limitamo-nos a assistir a deformidade do corpo e não do humano em si. Entender o humano é ir além da matéria, é desfacelar a casca para chafurdar ao íntimo daquilo que nos torna comuns em nossas diferenças. A obviedade da dança calculada, da coreografia duplicada e seguida, da imprecisão do preciso, faz com que a narrativa corporal, a transformação baconiana limite-se ao desenho da forma, da superfície. E estar na superfície é, via de regra, determinar-se superficial.
A segunda questão, o universo de Bacon, envolve outras tantas particularidades técnicas. Muitos são os espetáculos em cartaz e textos recentes debruçados sobre uma personalidade – histórica ou recente – como estratégia de discutir o Homem e a contemporaneidade. Todavia, há de se diferenciar a amplificação de uma persona para a linguagem teatral e a transformação do sujeito em personagem dramático.
Em DesFigura, assim como boa parte dos espetáculos em cartaz que se utilizam de tal premissa, não se vai além do próprio mostrar ou apresentar o homem-artista-personalidade Francis Bacon. Junta-se uma pitada de sua estética (ineficiente e reducionista), a pensamentos soltos em tom reflexivo, coleções de frases e leves intromissões da biografia íntima. Tudo certo, não fosse esse tratamento uma abordagem simplista da personagem. Não se encontra Bacon no contar a vida de Bacon. Ao contrário, desta maneira limita-o a leitura de um (no caso o dramaturgo) sem conduzir qualquer encontro mais profundo e sensivelmente particular com seu universo que o interprete diferentemente.
Faze-lo personagem não significa processar o seu encontro com o espectador. Bacon não se limita a pensamentos e estética, mas a soma de ambos decodificada sob a perspectiva da percepção do observador. Apresentar Bacon seria torná-lo signo sensível, no sentido mais íntimo e pessoal do público. Faze-nos sentir as emoções, sensações, inquietações do artista sem, necessariamente, figurar o próprio ou seus quadros para manipular nossa compreensão. Do jeito que DesFigura, e tantos outros propõem, sobra ao espectador o ouvir uma história e assistir a um personagem sem qualquer possibilidade concreta de vivenciar aquilo tudo apresentado. É literatura dramática, dramaturgia pura. O teatro, no então, pode e deve ir muito além disso...
DesFigura pertence, enfim, a gama dos espetáculos que se apropriam de complexas estruturas de pensamento, estética e comportamento, para recria-las em personagens dramáticos, sob o prisma acadêmicos, construídos numa ingênua tentativa de dar conta de todas as camadas que envolvem tais personalidades. Edi Botelho vai bem nesse encalço. Mas não chega a assustar. Assistimo-no sem deslumbramento ou fascinação, sem susto ou entorpecimento. Nada que nos leve a uma transformação incômoda, a uma desconfiguração de nossas certezas, à destruição de nossos íntimos, a trazer para nós um pouco do Bacon tão insistentemente personificado em cena. Em DesFigura , portanto, ficamos mais uma vez frente a frente a atores e seus esforços, mas muito longe de seremos invadidos por Bacon e seus berros definitivos.
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