Antro Particular

02 fevereiro 2007

INOCÊNCIA: a poesia a serviço do humano

A partir de hoje passo a escrever críticas de teatro também para o site Guia da Semana. O primeiro texto é sobre Inocência, dos Satyros. RUY FILHO


Espaço dos Satyros. Teatro lotado. O calor me leva a suar demasiadamente, o que por si só me conduz a desistir de entrar. Como prometi a Ivam Cabral, o protagonista, que iria e nos conheceríamos, então fiquei. A nova montagem do grupo, Inocência, é outro texto da alemã Dea Loher, de A vida na praça Roosevelt.

Nada muito original, de fato. O velho niilismo, as descrenças na capacidade da vida ser de fato melhor, no diminuir o sofrimento humano. Logo no saguão de entrada, já me via irritado com a possibilidade de duas horas de obviedade.

E foi o que senti frente às histórias que se intercalavam para me contar o que qualquer morador de uma megalópole já sabe: o quão triste é a solidão nas cidades. Ainda que a direção e soluções plásticas criadas por Rodolfo Garcia Vazquez sejam interessantes e curiosas, era muito pouco para justificar estar lá.

A peça acaba. Despeço-me com certa pressa. Volto para casa decepcionado talvez, porque acredito que Os Satyros sejam verdadeiramente especiais na produção teatral atual.

Os dias passam. Pouco a pouco me dou conta do real motivo daquela minha irritação durante a peça. Esqueço o calor, o tema, as circunstâncias. E percebo atônito que o que de fato me atingiu foi uma overdose de poesia.

Isso mesmo. Na ingenuidade das histórias, no cotidiano dos fatos apresentados, nas soluções trazidas, nas imagens projetadas, na maneira de interpretar. Em tudo a poesia se fazia presente de forma tão pura e essencial que me atingira a alma e cérebro, vasculhando e embaralhando minhas emoções e minhas seguranças.

Inocência me levou a confrontar com o poético de mim mesmo, a redescobrir a beleza do pequeno gesto, do minuto qualquer, da pessoa ao lado, dos momentos de silêncio. Havia no meu descontentamento a tentativa de fugir do sentir outra vez. Sentir, simplesmente. Como se fosse possível existir alheio aos outros, aos problemas, à cidade. Ingrata ilusão.

O Satyros trouxe à tona pelo efeito do excesso poético o reconhecimento do meu distanciamento da única coisa da qual jamais deveria ter me afastado, minha humanidade. Incluem-se aí falhas, medos, erros, tristezas. E na percepção de tais aspectos formadores do humano, descubro que também os antônimos foram abandonados.

Vivemos condicionados a sentimentos dosados e construídos por artifícios e falsos argumentos, tendo como maior atributo a capacidade em se controlar. Não sentir. Não viver.

Inocência explode pela trajetória das histórias essas regras modernas de sobrevivência. Propõe ao público trocá-las pela Existência. Existir em relação ao outro e ser assim parte de algo comum e simples, cotidiano. A peça grita um apela à vida. Incomoda? Muito! Porque são mais fáceis a alienação e abstração das emoções genuínas, o abandonar da inocência capaz de traduzir em poesia até mesmo a pior realidade.