Antro Particular

09 outubro 2007

É PRECISO SE DESPEDIR ANTES DE PROSSEGUIR

Entender as diversas maneiras de dizer adeus, tchau, até amanhã, até logo. A morte. O despedir-se traduz, no contemporâneo, mais do que uma maneira de nos relacionarmos. Em suas múltiplas faces, o rito estabelece por preceitos únicos certo tom dramático e escancara à face o quanto somos efêmeros frente ao outro e ao tempo. Numa tentativa heróica de confrontar o destino certo da solidão proveniente da individualidade, agrupamos-nos entre amigos, entre amantes, ao redor de ídolos, comunidades e circunstâncias.
Mas, no fundo, ao fim de cada dia, sobram a despedida inevitável e a constante crença do recomeço. Próximo a um ato de fé, quando se acredita em um princípio organizador, cuja capacidade maior tratará de preparar um novo amanhã. Próximo ao desespero, quando se espera do caos um reinício de uma ordem qualquer. Oferecer um adeus segue os preceitos da crença e da ausência, da esperança e da superstição.

Porém, nem sempre é assim. Nem sempre é possível retomar o passado, o antes, o ontem. Há momentos em que o adeus impõe outro início e não mais a retomada, e as distâncias se formalizam, cristalizam-se. Os corpos se separam e as histórias se individualizam a ponto de, em um futuro nem tão longínquo, tornar os envolvidos irreconhecíveis um ao outro. Permitimos a partida, aceitamos os silêncios. E encontramos neles a compreensão de ser a despedida algo inevitável.

Por isso a importância do rito. Aperto de mão, abraço apertado, afago, olhares, sorrisos e lágrimas, bilhetes e fotografias, acenos tímidos ou gestos escancarados, um último beijo, um bilhete sobre a mesa, uma carta enviada, o guardar de um objeto, o guardar de uma lembrança, o guardar de um corpo sob o chão.

É preciso conscientizar-se da passagem do outro em nós e de nós no outro, enquanto a lembrança reluta por aceitar a despedida. Inevitável, porém, é o continuísmo da vida, e mesmo a memória um dia se rende ao tempo e termina por igualar o mais importante rosto de ontem ao mais casual personagem de outrora. No fim, tudo e todos se tornam uma coisa só: passado.

Quando convidado para dirigir o espetáculo CIAO, com a Cia. Teatro da Janela, desafiado em abri a cena à relevância do ator, o tema surgido fora a despedida, as maneiras de se falar adeus. Longo processo envolvendo a criação de uma companhia jovem dialogando com uma dramaturgia jovem igualmente porém de maturidade técnica ímpar.

Hoje, dias após a estréia e toda a ansiedade que tal evento inclui, percebo que sofremos no nascimento do trabalho a mesma ritualização das despedidas quais trouxemos à cena. Aqueles jovens já não são tão novos assim. O discurso se porta como passagem para um outro caminho, onde cada um percorre, desde agora, com maior ou menor facilidade.

A vida é o que é. Sem pedir-nos desculpas e licença. Vão-se familiares, amigos, professores, referências, momentos, sentimentos. Surgem substitutos, novos processos, outros motivos e importâncias. E, enquanto o ontem se formula em massa de passado, clareiam as certezas de que, para a sobrevivência de algo, é necessário empenho e verdadeiro envolvimento de todos os lados.

A vida é o que é. Puro estado de confronto com a solidão.

Mas é curioso e indecifrável perceber que, mesmo após tantas despedidas, as diárias despedidas, a cada manhã, nesses treze anos, reencontro em uma única pessoa os argumentos que desmentem a verdade. Basta olhar para Patrícia para me certificar de que nenhuma despedida precisa ser para sempre. E descobrir bastar apenas uma pessoa para nos fazer sobrevivente.

Ainda dizendo tchau, despedindo-me dos próximos passados, aprendo a viver, apreendo a vida, e sem constrangimento e busca por respostas, sigo bem.

Arte gráfica: Patrícia Cividanes.

4 Comments:

  • Lindo...
    Não é necessário mais que isso.

    By Anonymous Anônimo, at 12:10 AM  

  • Obrigado, Gui. Vocês certamente fazem parte dessa beleza.
    Beijos

    By Blogger Ruy Filho, at 1:29 AM  

  • Todos os textos merecem comentários, mas como nos vemos quase todos os dias, as conversas surgem e os comentários não vão para o blog, são conversados fora dele.
    Nesse caso resolvi deixar registrado a profundidade e a beleza desse texto.
    É Ruy, quando você tem que escrever sobre alguma coisa, você provoca e sensibiliza as pessoas, mas quando você se sente tocado (com tantas coisas que acontecem nessa de “ser artista”) vejo surgir poesia.Seguimos. . .
    Abraços,
    Diego

    By Anonymous Anônimo, at 12:38 PM  

  • Lindo, profundo, triste e feliz, meu querido. Não é à toa que te elegi meu genro referido. Te amo.

    By Blogger Maria Helena, at 10:06 PM  

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