Antro Particular

01 setembro 2011

murro em ponta de faca: poesia política

Entre a política, a ação política e a poética, sempre opto pela última. A poesia tem pra mim um valor mais revolucionário do que muitas ações direcionadas ao pragmatismo de uma solução imediatista. Há na poética, no encontro entre um universo simbólico e seu inesperado acontecimento, certo desajuste impossível de ser identificado. O discurso político e suas ações resultantes podem me levar a conclusões, escolhas, definições e determinar a maneira como me relaciono com aspectos do meu viver em sociedade, em comunidade, em tribo. Mas a poética, essa me atinge tangencialmente. Pode passar despercebida em seu próprio instante de manifestação, mas estará lá, ao lado, junto ao travesseiro, às escolhas subjetivas, ao íntimo de tudo aquilo que inexiste em ação porém fundamental ao desenvolvimento de algo maior do que o próprio coletivo: o ser humano qual sou.

Quando se trata do teatro, ou seja, da aplicação poética sobre a cena, então, por motivos óbvios a todos aqueles que se utilizam da linguagem para se expressar, a violência em como sou atingido é exponencial. Cada um possui sua forma de se comunicar com a realidade. O teatro é, sem dúvida, a maneira que se fez em mim. E isso nem sempre é uma escolha, portanto, entenda-se, nem sempre o encontro é prazeroso, e nem sempre o prazer é o objetivo também. Dessa maneira, ainda que me considere excessivamente politizado, visto que preferiria ser mil vezes mais poético como criador, acabo interpretando a poética como instrumento político. Não vejo ação mais responsável ao ser humano do que a poesia. E não espero de nenhuma política a capacidade de desconstruir e reconstruir o ser de maneira tão profunda como a que obtenho pela poética.

Sendo assim, toda vez que me sento em uma plateia, toda vez que leio uma peça, entro em uma exposição, ouço uma música, leio um livro, seja o que for, espero encontrar na manifestação poética não um discurso objetivo destinado a um específico fim, mas os mecanismos de sublimação que levam a objetividade servir apenas ao desenho formal, enquanto o subtexto, o interesse genuíno da arte, faz-se instrumento para construir em mim uma percepção mais apurada sobre quem sou e onde estou, escancarando meus medos e preconceitos guardados em falsas seguranças e desculpas, expondo minhas fraquezas e estupidez, ampliando minha sensibilidade sobre o todo, de modo a me obrigarem a rever a própria compreensão de quem sou.

Murro em Ponta de Faca, texto de Boal de 1974, não poderia vir de outra forma que carregado de sentimento político em busca de uma identidade social que se partia de maneira cruel com o acirramento da censura, exílio, tortura e assassinato, durante a ditadura militar brasileira. É impossível não se espantar como esse período foi eficiente em desconstruir essa identidade, obrigando o existir brasileiro a condições de silêncio e medo constante. Tinha eu um ano ainda quando Boal já expurgava em palco o desespero dessas condições. O que poderia, então, ter eu com isso? Muito...

Talvez porque sofra de uma certa necessidade de ideologias e não as consiga no presente, sejam nos artistas ou na própria sociedade, desde sempre trago algo parecido com a nostalgia daquilo que nunca vivencie. Fazem-me falta os discursos de ontem. Não pelas palavras ou seus objetivos. Mas pela maneira como havia certa poesia no abrir mão de existir indivíduo para servir ao coletivo. Muita poesia no século passado, e muitas das melhores, foram criadas a partir da necessidade de construir novos caminhos. Não fosse por isso, não haveriam as vanguardas modernas e tanto interesse pelo novo, pelo outro, pela tentativa de enxergar por ângulos diferentes. Ou mesmo o desenvolvimento de diversos movimentos filosóficos, cuja busca em (re)entender o homem, a civilização e a história enfrentava debates ferrenhos e interesses variados entre poder e dúvida. Sendo assim, ainda que a dramaturgia das décadas passadas quase sempre me cansem em suas características estéticas, a poesia contida no desejo humano de buscar o humano a todos me fascina.

Ou talvez porque igualmente sofra de uma certa expectativa desenvolvimentista, que me leva sempre a acreditar que a revisão sobre o ontem é suficiente para me apontar o amanhã. Que determinadas reconfigurações podem reconstruir a própria história e reapresentar os fatos de maneira a me traduzir de modo inesperado aquilo que imaginava conhecer. Nada me é mais inquietante do que aprender algo. E quando sou atingido, desfigurando minhas certezas sobre determinados assuntos e percepções, sinto-me vazio e disponível a qualquer tipo de contato.

De qualquer modo, o espetáculo de Boal se apontava, inicialmente, ao menos dentro de minhas expectativas, para uma peça voltada ao panfletário necessário de sua época. Feito um grito híbrido de acusação e socorro. Contudo, recebi muito mais do que isso. A simplicidade com que me fora apresentado, a delicadeza em que a história política foi trazida pelos ótimos atores, levou-me a enxerga-lo de outra maneira. Paulo José construiu com sabedoria mais do que um discurso político. Há ali a tradução fina do homem, porém não restrito a 74. Qualquer homem. Em qualquer tempo. E foi pela descoberta de imenso valor humano, ora em conflito, ora alienado, desesperado, sonhador, que o espetáculo trouxe mais do que um discurso, apresentando-me a poética de uma escrita, ao estudo delicado da verborragia, da palavra dita não ao intelecto apenas, mas ao sentimento do se reconhecer humano.

A nova montagem de Murro em Ponta de Faca faz de Boal menos um ativista e mais um poeta do homem social. E como disse, perceber que se pode aprender com tudo aquilo que sempre se pareceu óbvio, é uma das coisas que me dá mais fôlego para continuar e acreditar. Se Boal conseguiu me levar de volta a uma época e ao lamento de minha própria história, Paulo José me trouxe a política em forma de poesia doce e cortante, aguda e fundamental.