CODA: a construção de um processo como narrativa cênica
Postado na hospedagem anterior do blog no domingo, 17 de abril de 2005
23:32:18
Poucos trabalhos são tão imediatamente intrigantes e estimulantes quanto o espetáculo Coda, realizado pelo Théâtre du Radeau, dirigido por François Tanguy. Apresentado em Curitiba (Ópera de Arame) e em São Paulo (Sesc Belenzinho), a diferença entre os dois espaços deixou claro a importância da construção da atmosfera do espetáculo junto ao público. Em Curitiba, a apresentação, cercada pela transparência e interferências da estrutura do teatro de vidro, teve uma coesão estética menor do que pôde ser vista em São Paulo, ainda que já tenha sido potencialmente forte. Detalhe fundamental para os que buscam se aprofundar no processo de criação de François.
Segundo o diretor, a peça surge com a escolha dos materiais com os quais gostaria de trabalhar: dezenas de texturas formam a cenografia móvel pelos intérpretes, por uma reconstrução constante da espacialidade, apropriando-se das possibilidades plásticas da profundidade da cena, anteparos, fundos, limitações, desenhos espaciais, ambientações, linhas, transparências, combinações entre matérias. Já aqui os conceitos são outros, pois não se propõe a cenografia como se entende classicamente o cenário. A junção de tantas possibilidades age dentro do espetáculo por base narrativa, como conceito cênico do espetáculo. A construção espacial como argumento de criação teatral.
Agregando à espacialidade, François opta acertadamente por introduzir a iluminação de forma igualmente não convencional. Utilizando estruturas não pertencentes ao teatro, como luminárias de ruas, o espaço ganha nuanças que valorizam as matérias expostas, em variações de lâmpadas e intensidades, sempre advindas do chão e não de varas de luz como no palco italiano. As sombras se revelam desenhos precisos sobre as plataformas verticais, dialogando como personagens dentro da narrativa, ampliando a participação do corpo na cena. Precisa, essencial, a iluminação transita a percepção do público entre momentos de memória e associação imagética ao limiar de atmosferas oníricas e de pura poesia destituídas de intenções objetivas, deixando em aberto a compreensão da narrativa que se aprofunda cada vez mais na importância do processo inicial do emprego dos materiais como construção da cena.
Se por um lado a elaboração plástica do espetáculo, através da "cenografia" e iluminação é o fundamento principal da narrativa cênica de Coda, o corpo é essencial para que estes elementos possam se apresentar com a potência buscada. Utilizados igualmente como atributos plásticos, os performers se apresentam de maneira determinante dentro da narrativa, pois canalizam a percepção do público sugerindo passagens de cenas, de tempo e espaço. Através da ocupação no espaço, os corpos são apresentados bem distribuídos compondo esteticamente ambientes simultâneos. Há na precisão dos movimentos a percepção do gesto original e simples, revelando uma partitura corporal precisa e interessante. Ao todo, os atores são competentes nesta participação da cena, gerando ainda mais concisão no espetáculo. Contudo, Laurence Cable vai mais longe. Suas duas principais aparições roubam da cena a importância plástica transferindo-a para sua genial interpretação. Poucas são as atrizes do porte de Laurence.
Cabe aos performers a vocalização de textos de Antonin Artaud, Pirandello, Hölderlin, Kafka, Gadda, Lucrécio e Dante sem a preocupação de gerar na colagem uma narrativa dramática literária. Vocalização pois o que é oferecido é mais do que versos e frases. A importância está na sonoridade da voz enquanto matéria, produto construído pelo ar através do corpo. Ora perfeitamente audíveis, ora sobrepostas pela sonoplastia, aos brados projetados ou sussurros instrospectivos, a voz encontra a música formulando um único elemento: o som. A sonoplastia permeia todo o espetáculo, conduzindo de forma enérgica e definitiva o percurso da percepção e a criação de atmosferas. Como uma ópera contemporânea, o preenchimento sonoro permite ao todo o esvaziamento de maiores obviedades, de subsídios sígnicos e entre-linhas explícitas, pois capta o momento em sua totalidade, gerenciando a construção e escancarando cada vez mais o potencial imaginário do espectador.
A opção pela libertação dos elementos, contrapondo-se à ópera wagneriana, traz ao espetáculo valores originais calcados em um conceito maior, ou no caso de Coda, intenções. Hermético, a pesquisa com as matérias e as capacidades narrativas advindas da combinação entre as mesmas, paradoxalmente revela a todo o instante sua função de reagrupar o pensamento crítico pela exploração fragmentada da percepção. Não há valor maior em cena, apenas a contaminação generalizada criando um espaço ocupado por uma discussão sobre o fazer teatral contemporâneo. O que se assiste não é um processo, mas a transformação do processo em conceito e deste em estética e então em cena. Aparadadas as conveções sem extingüí-las, apropriando-se do meio técnico para edificar condições cênicas onde o teatro se coloca sobre si mesmo sem se fazer meta-teatro.
Tal propósito revela-se político e provocativo em seus meios colocando em xeque tanto o próprio conceito de espetáculo quanto o de público. Pois cabe ao espectador participação definitiva ao todo, já que muitas vezes as cenas são criadas especificamente para o embate com sua percepção. Portanto, sem a presença real (e portanto material) do espectador, não haveria percepção a ser estimulada e conseqüentemente a cena não se justificaria. O espectador se mostra elo de justificativa da existência da cena, presentificando a manifestação teatral, determinando por sua presença física o presente temporal necessário para a comunicação. Presenciador e não somente espectador.
Um verdadeiro espetáculo é capaz de suscitar questões estéticas e filosóficas, proposições políticas e artísticas, relacionar o fazer e o conceito, apropriar-se da tradição reavaliando a atualidade, condicionando isso tudo em poucas horas e situações. Arte. Coda faz isso e se mostra muito mais. Mostra-se ambicioso em sua grandiosidade paralelo a uma simplicidade na compreensão da teatralidade, e nos joga contra nossos valores advindos de fazeres aprisionados pela historicidade dos espetáculos e diretores passados.
François criou algo inexperado. Como se adentrássemos a uma gigantesca instalação de Joseph Beuys, recheada por personagens de Magritte. Lembrando que Magritte buscava em seus personagens uma reflexão sobre a identidade e a individualidade de um homem meta-físico e atemporal - porém real e presente - enquanto Beuys realizava suas instalações de maneira a estabelecer um vínculo entre a idéia e a escultura, a vida e a presença. E se a idéia é escultura - pois é executável, então matéria - e o corpo a identidade no ocupar do espaço em uma determinada época, então Coda caminha pela contemporaneidade de um teatro que está além do que convencionamos. De um jeito francês, filosófico, aprofundado, denso, difícil, estético. Mas como François, maduro, crítico, generoso, elegante e inquieto.
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Poucos trabalhos são tão imediatamente intrigantes e estimulantes quanto o espetáculo Coda, realizado pelo Théâtre du Radeau, dirigido por François Tanguy. Apresentado em Curitiba (Ópera de Arame) e em São Paulo (Sesc Belenzinho), a diferença entre os dois espaços deixou claro a importância da construção da atmosfera do espetáculo junto ao público. Em Curitiba, a apresentação, cercada pela transparência e interferências da estrutura do teatro de vidro, teve uma coesão estética menor do que pôde ser vista em São Paulo, ainda que já tenha sido potencialmente forte. Detalhe fundamental para os que buscam se aprofundar no processo de criação de François.
Segundo o diretor, a peça surge com a escolha dos materiais com os quais gostaria de trabalhar: dezenas de texturas formam a cenografia móvel pelos intérpretes, por uma reconstrução constante da espacialidade, apropriando-se das possibilidades plásticas da profundidade da cena, anteparos, fundos, limitações, desenhos espaciais, ambientações, linhas, transparências, combinações entre matérias. Já aqui os conceitos são outros, pois não se propõe a cenografia como se entende classicamente o cenário. A junção de tantas possibilidades age dentro do espetáculo por base narrativa, como conceito cênico do espetáculo. A construção espacial como argumento de criação teatral.
Agregando à espacialidade, François opta acertadamente por introduzir a iluminação de forma igualmente não convencional. Utilizando estruturas não pertencentes ao teatro, como luminárias de ruas, o espaço ganha nuanças que valorizam as matérias expostas, em variações de lâmpadas e intensidades, sempre advindas do chão e não de varas de luz como no palco italiano. As sombras se revelam desenhos precisos sobre as plataformas verticais, dialogando como personagens dentro da narrativa, ampliando a participação do corpo na cena. Precisa, essencial, a iluminação transita a percepção do público entre momentos de memória e associação imagética ao limiar de atmosferas oníricas e de pura poesia destituídas de intenções objetivas, deixando em aberto a compreensão da narrativa que se aprofunda cada vez mais na importância do processo inicial do emprego dos materiais como construção da cena.
Se por um lado a elaboração plástica do espetáculo, através da "cenografia" e iluminação é o fundamento principal da narrativa cênica de Coda, o corpo é essencial para que estes elementos possam se apresentar com a potência buscada. Utilizados igualmente como atributos plásticos, os performers se apresentam de maneira determinante dentro da narrativa, pois canalizam a percepção do público sugerindo passagens de cenas, de tempo e espaço. Através da ocupação no espaço, os corpos são apresentados bem distribuídos compondo esteticamente ambientes simultâneos. Há na precisão dos movimentos a percepção do gesto original e simples, revelando uma partitura corporal precisa e interessante. Ao todo, os atores são competentes nesta participação da cena, gerando ainda mais concisão no espetáculo. Contudo, Laurence Cable vai mais longe. Suas duas principais aparições roubam da cena a importância plástica transferindo-a para sua genial interpretação. Poucas são as atrizes do porte de Laurence.
Cabe aos performers a vocalização de textos de Antonin Artaud, Pirandello, Hölderlin, Kafka, Gadda, Lucrécio e Dante sem a preocupação de gerar na colagem uma narrativa dramática literária. Vocalização pois o que é oferecido é mais do que versos e frases. A importância está na sonoridade da voz enquanto matéria, produto construído pelo ar através do corpo. Ora perfeitamente audíveis, ora sobrepostas pela sonoplastia, aos brados projetados ou sussurros instrospectivos, a voz encontra a música formulando um único elemento: o som. A sonoplastia permeia todo o espetáculo, conduzindo de forma enérgica e definitiva o percurso da percepção e a criação de atmosferas. Como uma ópera contemporânea, o preenchimento sonoro permite ao todo o esvaziamento de maiores obviedades, de subsídios sígnicos e entre-linhas explícitas, pois capta o momento em sua totalidade, gerenciando a construção e escancarando cada vez mais o potencial imaginário do espectador.
A opção pela libertação dos elementos, contrapondo-se à ópera wagneriana, traz ao espetáculo valores originais calcados em um conceito maior, ou no caso de Coda, intenções. Hermético, a pesquisa com as matérias e as capacidades narrativas advindas da combinação entre as mesmas, paradoxalmente revela a todo o instante sua função de reagrupar o pensamento crítico pela exploração fragmentada da percepção. Não há valor maior em cena, apenas a contaminação generalizada criando um espaço ocupado por uma discussão sobre o fazer teatral contemporâneo. O que se assiste não é um processo, mas a transformação do processo em conceito e deste em estética e então em cena. Aparadadas as conveções sem extingüí-las, apropriando-se do meio técnico para edificar condições cênicas onde o teatro se coloca sobre si mesmo sem se fazer meta-teatro.
Tal propósito revela-se político e provocativo em seus meios colocando em xeque tanto o próprio conceito de espetáculo quanto o de público. Pois cabe ao espectador participação definitiva ao todo, já que muitas vezes as cenas são criadas especificamente para o embate com sua percepção. Portanto, sem a presença real (e portanto material) do espectador, não haveria percepção a ser estimulada e conseqüentemente a cena não se justificaria. O espectador se mostra elo de justificativa da existência da cena, presentificando a manifestação teatral, determinando por sua presença física o presente temporal necessário para a comunicação. Presenciador e não somente espectador.
Um verdadeiro espetáculo é capaz de suscitar questões estéticas e filosóficas, proposições políticas e artísticas, relacionar o fazer e o conceito, apropriar-se da tradição reavaliando a atualidade, condicionando isso tudo em poucas horas e situações. Arte. Coda faz isso e se mostra muito mais. Mostra-se ambicioso em sua grandiosidade paralelo a uma simplicidade na compreensão da teatralidade, e nos joga contra nossos valores advindos de fazeres aprisionados pela historicidade dos espetáculos e diretores passados.
François criou algo inexperado. Como se adentrássemos a uma gigantesca instalação de Joseph Beuys, recheada por personagens de Magritte. Lembrando que Magritte buscava em seus personagens uma reflexão sobre a identidade e a individualidade de um homem meta-físico e atemporal - porém real e presente - enquanto Beuys realizava suas instalações de maneira a estabelecer um vínculo entre a idéia e a escultura, a vida e a presença. E se a idéia é escultura - pois é executável, então matéria - e o corpo a identidade no ocupar do espaço em uma determinada época, então Coda caminha pela contemporaneidade de um teatro que está além do que convencionamos. De um jeito francês, filosófico, aprofundado, denso, difícil, estético. Mas como François, maduro, crítico, generoso, elegante e inquieto.
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