Antro Particular

06 dezembro 2005

SERGIO SALVIA COELHO: Nanini ilumina a angústia de Gerald Thomas

Postado na hospedagem anterior do blog no domingo, 8 de maio de 2005
03:22:11


Folha de Sao Paulo, Ilustrada, 7 de maio 05

Em "Um Circo de Rins e Fígados", dramaturgo retoma vigor da década passada e divide responsabilidade com atores

No fim da peça, em meio à fumaça recortada por focos de luz, o protagonista dá seu último adeus à platéia, que não sabe mais se ri ou chora. Sim: é Gerald Thomas de volta, com o vigor da década passada, como se via em "Carmen com Filtro 2" ou "The Flash and Crash Days".

Não se trata simplesmente, no entanto, de uma volta para trás. Importantes lições foram assimiladas: cada vez mais Thomas compartilha com os atores a responsabilidade pelo espetáculo, que agora se equilibra entre uma estética cênica meticulosa (Thomas, como de hábito, assina texto, direção, iluminação, trilha, cenografia e projeto gráfico, e tem no figurinista Antonio Guedes um parceiro à altura) e um texto que se apóia na performance, não raro no improviso, dos atores com a missão de desautorizar os Movimentos Obsessivos e Redundantes para Tanta Estética (ou seja, negar a M.O.R.T.E., título de sua última grande montagem de transição). E, para essa função, tem agora o privilégio de contar com Marco Nanini.

Assim, a montagem se impõe como uma explosiva fusão entre uma opressiva atmosfera expressionista e um humor negro libertador, que vem direto do surrealismo de Genet e Beckett. O impacto visual do cenário -grandes painéis saturando a cena de significados, para logo em seguida serem retirados e deixá-la desolada- relembram o público que o autor demiurgo é, na origem, um artista plástico.

O fato de esses painéis serem reproduções em grande escala de esboços para montagens antigas dá pistas sobre a própria trama da peça. Thomas, durante muito tempo, desenhava suas peças em vez de escrevê-las, até que um dia, saturado de si mesmo, experimentou em "Nowhere Man Unplugged" (o palco nu), simples suporte para seu ator Luiz Damasceno.

O mundo, no entanto, seguiu sendo um pesadelo, e as obsessões visuais voltaram a assombrá-lo. No fundo do poço, a saída foi arrumar um novo alter ego para poder se observar de fora. No começo da peça, portanto, Marco Nanini, depois de sonhos agitados, acorda e se vê transformado em Gerald Thomas, no seu limbo de criação, tendo apenas hipocondria e erudição como armas originais.

Isso é um trabalho para o super-Nanini. Pondo o público no bolso a cada cena, sem perder nunca o fio da meada da angústia com a falta de sentido do mundo, eis um raro exemplo de ator visceral e distanciado ao mesmo tempo, que comove pelo riso, que diverte com a desgraça mais mórbida. Cada cena é calibrada para ser esgarçada por ele, e frases em princípio pueris, como "Nada prova nada" e um melodramático "Maldito momento!", se tornam bordões a serem lembrados por muitos anos.
A alegria de Nanini ilumina as trevas da obsessão geraldiana, sem desautorizá-la. A própria voz em off do autor, marca registrada de suas peças, pode agora estar bem menos presente, em uma serenidade quase olímpica, ela que já foi tão resfolegante.

E a Musa-Bailarina, outra personagem fixa, aqui a cargo da múltipla Fabiana Guglielmetti, escapa do linchamento, mas não de David Lynch, em uma caricatura comoventemente pueril. Quanto ao coro persecutório, outrora tão esmagado de responsabilidade, agora visivelmente se diverte muito com as marcas criadas por Dani-hu com a verve de Jackie Chan e que Luiz Damasceno tornou orgânicas.

No fim da peça, em meio à fumaça recortada, depois de passar por obsessões passadas e enfrentar os mesmos simulacros e becos sem saída, o protagonista dá seu último adeus à platéia -mas já é tarde demais para morrer.

Ele agora encarna não só Gerald Thomas, mas todo o teatro brasileiro, dos jovens fomentados à sábia indignação de Walmor Chagas, que, em meio à precariedade e desrespeito, se recusa a ser vencido. Que soe o hino nacional, pelo samba de Ivo Meirelles: Gerald Thomas está vivo, e o teatro não morre tão cedo.