GERALD THOMAS: um circo de si mesmo
Postado na hospedagem anterior do blog na terça-feira, 17 de maio de 2005
06:22:34
Ato 1:
Primeiro movimento: 1999. Sala Alpha, Sesc Consolação. CPT. Gerald sai rapidamente da sala para ir ao banheiro visivelmente nervoso. Faltam poucos minutos para o início de Nowhere Man. Eu havia decidido conhecê-lo. As portas se abrem. Não há fumaça ou iluminação cênica, apenas a luz branca da sala. Luis Damasceno no papel principal, Camila Morgado. A peça é interessantíssima, os atores impossíveis de adjetivar. Não consegui procurá-lo, saí sem coragem de me aproximar. Um outro dia, talvez...
Segundo movimento: "Quero deixar um recado para o professor Damasceno". A secretaria da USP me atende desinteressada. Sem perceber a importância do que peço anota burocraticamente meu telefone. Semanas... "Ruy, acorda, o Damasceno está no telefone...". A felicidade da Patrícia só perde para o meu susto. "Oi... é, deixei um recado pro senhor...". Foram algumas horas de conversa em um apartamento decorado por pinturas, cerâmicas e livros de arte. "Talvez você possa acompanhar o novo trabalho dele...". Dias sem dormir. A leitura de seus artigos, o livro de Silvia Fernandes, as críticas em jornais. Milhares de segundos.
Terceiro movimento: Sala de ensaio, Oswald de Andrade. E meus cabelos curiosamente laranjas. Nenhuma palavra enquanto assistia ao surgimento de Ventriloquist. Sesc Vila Mariana. "Você fez teatro com o Damasceno?", "Não, me formei em artes plásticas...". Hélio Oiticica ao sabor de pipocas pelo corredor, lá pelas 3 horas da manhã. O cuidado em arrumar o cigarro na boca de cena, alinhar os guarda-chuvas. A estréia se revelou um marco na trajetória de Gerald. E logo depois, meus cabelos já eram novamente negros. A Cia. vai para o Rio de Janeiro. As despedidas são vazias e tímidas... Fica o sentimento de aprendizado.
Ato 2:
Quarto movimento: 2005. "Gerald, você lembra de mim? Eu era àquele que tinha o cabelo laranja!". Retorno ao Brasil, a São Paulo. E-mails, telefonemas. Estou mais pronto agora. Reuniões com hotel, conversas com espaços para ensaios; entre a participação na performance de Verônica Cordeiro, na Galeria Virgílio, e a Casa Provisória no Festival de Curitiba, a produção de Um Circo de Rins e Fígados e depois seguirei minha vida. Ilusão ou ingenuidade ou medo?
Quinto movimento: Sesc Pinheiros. Equipe técnica. Gerald sobe ao palco, estou de costas. Meus cabelos, agora, grisalhos. Nos cumprimentamos e volta a timidez quando da despedida em 2000. Mas passa. Hebraica, ensaios... Probelmas, problemas... "O Gerald está na portaria sem conseguir entrar". De volta ao Sesc Pinheiro. "O Gerald está na portaria sem conseguir entrar!". Escadas maiores, distâncias burocráticas... Fazer dar certo, só preciso fazer isso. As conversas avançam sobre as artes plásticas contemporâneas, as produções atuais, os grandes nomes do teatro, da ópera, da música. A política em São Paulo, o governo da Marta, PT. As madrugadas de ensaio ocupam os dias, o cansaço o corpo, as risadas sozinhos no teatro mantém a força necessária para ficar mais. Nanini e Fabi são gentis como poucos, Gerald está como nunca entusiasmado. O espetáculo é divertido, político. À beira do proscênio, sentado no chão acarpetado inacreditavelmente carmim, folhas de anotações se confundem em um caderno velho. Cada gesto, cada entonação sugerem uma reflexão. Tudo se torna matéria de estudos e, nos caminhos feito nos ônibus de casa ao teatro, as palavras ganham considerações em busca da compreensão do fazer arte. Nada é mais estimulante do que assistir as descobertas na criação de um espetáculo. Devo a Gerald o que se tornará um dia minha formação.
Sexto movimento: Estréia. Gerald está nervoso, ansioso. O espetáculo é difícil, requer sincronia técnica. Eu, sentado na cabine técnica, pouco posso fazer e ajudar. Não consigo assistir. Minha atenção se prende ao público, às reações, os risos nas gags, na luz, na fumaça, no som, no tempo, na voz dele comandando milímetros de tudo em nossos fones. Não fui aos aplausos. Sabia que participara de alguma forma, mas preferi assim. O orgulho se rendia ao nervosismo. Convidados, camarins. Jantar. Até amanhã... Convidados, camarins. Jantar. Até a semana que vem... O teatro está vazio, escuro. Sexta-feira. Sento na platéia enquanto os olhos acostumam com os desenhos das varas de luz, rotundas, pernas. Sinto vontade de sorrir. É bom estar só... Terceiro sinal. Desta vez, junto com Domingos - um dos seres mais iluminados das coxias dos nossos palcos - ao lado de Gerald. Sentir a risada distante na platéia. Ver o suor de Nanini. A expectativa da cena de Fabi. A alegria de Ana. Há algo que move toda a máquina. Gostaria de ter uma câmera nas mãos.
Sétimo movimento: Pela primeira vez estou na platéia. Esta é a terceira semana em São Paulo. Impossível relaxar. Terceiro sinal. A fumaça está ocupando todo o teatro. Sobe a lona frontal. Pela primeira vez, distante, cômodo, assisto Nanini iniciar a peça. Segunda cena, terceira, quinta, décima... Nanini é gigantesco, Fabi está magnífica, Amadeo é uma das melhores surpresas. Quando percebo, assisto como quem nunca a assistira. Conduzido pelas piadas aos risos, respirando profundo aos sons dos nomes dos mortos pela ditadura, absorto pela narrativa. Os olhos se enchem de vontade ao som do hino. Orgulho. Sou brasileiro. Nanini é brasileiro. Gerald é o que quiser ser, mas o Brasil também é sua bunda, suas provocações, seus desenhos, seu teatro! Eu... sou brasileiro! Sodomizado pela cultura americana com as pernas abertas em um país-IML. Encantado como a bandeira lançada ao palco feito em cultura cafona e delirante de um jovem artista que nem sabe direito o que quer. Eu sou assim... O que assisti foi a mim mesmo! E devo a Gerald por me fazer me rever artista. Ao fim de tudo minha crítica substituí pela de Contardo Calligaris. Pensei muito estes dias todos, mas os gênios precisam ser respeitados e não posso tentar ir além do que li em sua coluna. O que dizer, então? Nada... Basta esperar o oitavo movimento e o nono e o décimo e o décimo primeiro... E quem sabe um dia eu também... Bom, quem sabe...
06:22:34
Ato 1:
Primeiro movimento: 1999. Sala Alpha, Sesc Consolação. CPT. Gerald sai rapidamente da sala para ir ao banheiro visivelmente nervoso. Faltam poucos minutos para o início de Nowhere Man. Eu havia decidido conhecê-lo. As portas se abrem. Não há fumaça ou iluminação cênica, apenas a luz branca da sala. Luis Damasceno no papel principal, Camila Morgado. A peça é interessantíssima, os atores impossíveis de adjetivar. Não consegui procurá-lo, saí sem coragem de me aproximar. Um outro dia, talvez...
Segundo movimento: "Quero deixar um recado para o professor Damasceno". A secretaria da USP me atende desinteressada. Sem perceber a importância do que peço anota burocraticamente meu telefone. Semanas... "Ruy, acorda, o Damasceno está no telefone...". A felicidade da Patrícia só perde para o meu susto. "Oi... é, deixei um recado pro senhor...". Foram algumas horas de conversa em um apartamento decorado por pinturas, cerâmicas e livros de arte. "Talvez você possa acompanhar o novo trabalho dele...". Dias sem dormir. A leitura de seus artigos, o livro de Silvia Fernandes, as críticas em jornais. Milhares de segundos.
Terceiro movimento: Sala de ensaio, Oswald de Andrade. E meus cabelos curiosamente laranjas. Nenhuma palavra enquanto assistia ao surgimento de Ventriloquist. Sesc Vila Mariana. "Você fez teatro com o Damasceno?", "Não, me formei em artes plásticas...". Hélio Oiticica ao sabor de pipocas pelo corredor, lá pelas 3 horas da manhã. O cuidado em arrumar o cigarro na boca de cena, alinhar os guarda-chuvas. A estréia se revelou um marco na trajetória de Gerald. E logo depois, meus cabelos já eram novamente negros. A Cia. vai para o Rio de Janeiro. As despedidas são vazias e tímidas... Fica o sentimento de aprendizado.
Ato 2:
Quarto movimento: 2005. "Gerald, você lembra de mim? Eu era àquele que tinha o cabelo laranja!". Retorno ao Brasil, a São Paulo. E-mails, telefonemas. Estou mais pronto agora. Reuniões com hotel, conversas com espaços para ensaios; entre a participação na performance de Verônica Cordeiro, na Galeria Virgílio, e a Casa Provisória no Festival de Curitiba, a produção de Um Circo de Rins e Fígados e depois seguirei minha vida. Ilusão ou ingenuidade ou medo?
Quinto movimento: Sesc Pinheiros. Equipe técnica. Gerald sobe ao palco, estou de costas. Meus cabelos, agora, grisalhos. Nos cumprimentamos e volta a timidez quando da despedida em 2000. Mas passa. Hebraica, ensaios... Probelmas, problemas... "O Gerald está na portaria sem conseguir entrar". De volta ao Sesc Pinheiro. "O Gerald está na portaria sem conseguir entrar!". Escadas maiores, distâncias burocráticas... Fazer dar certo, só preciso fazer isso. As conversas avançam sobre as artes plásticas contemporâneas, as produções atuais, os grandes nomes do teatro, da ópera, da música. A política em São Paulo, o governo da Marta, PT. As madrugadas de ensaio ocupam os dias, o cansaço o corpo, as risadas sozinhos no teatro mantém a força necessária para ficar mais. Nanini e Fabi são gentis como poucos, Gerald está como nunca entusiasmado. O espetáculo é divertido, político. À beira do proscênio, sentado no chão acarpetado inacreditavelmente carmim, folhas de anotações se confundem em um caderno velho. Cada gesto, cada entonação sugerem uma reflexão. Tudo se torna matéria de estudos e, nos caminhos feito nos ônibus de casa ao teatro, as palavras ganham considerações em busca da compreensão do fazer arte. Nada é mais estimulante do que assistir as descobertas na criação de um espetáculo. Devo a Gerald o que se tornará um dia minha formação.
Sexto movimento: Estréia. Gerald está nervoso, ansioso. O espetáculo é difícil, requer sincronia técnica. Eu, sentado na cabine técnica, pouco posso fazer e ajudar. Não consigo assistir. Minha atenção se prende ao público, às reações, os risos nas gags, na luz, na fumaça, no som, no tempo, na voz dele comandando milímetros de tudo em nossos fones. Não fui aos aplausos. Sabia que participara de alguma forma, mas preferi assim. O orgulho se rendia ao nervosismo. Convidados, camarins. Jantar. Até amanhã... Convidados, camarins. Jantar. Até a semana que vem... O teatro está vazio, escuro. Sexta-feira. Sento na platéia enquanto os olhos acostumam com os desenhos das varas de luz, rotundas, pernas. Sinto vontade de sorrir. É bom estar só... Terceiro sinal. Desta vez, junto com Domingos - um dos seres mais iluminados das coxias dos nossos palcos - ao lado de Gerald. Sentir a risada distante na platéia. Ver o suor de Nanini. A expectativa da cena de Fabi. A alegria de Ana. Há algo que move toda a máquina. Gostaria de ter uma câmera nas mãos.
Sétimo movimento: Pela primeira vez estou na platéia. Esta é a terceira semana em São Paulo. Impossível relaxar. Terceiro sinal. A fumaça está ocupando todo o teatro. Sobe a lona frontal. Pela primeira vez, distante, cômodo, assisto Nanini iniciar a peça. Segunda cena, terceira, quinta, décima... Nanini é gigantesco, Fabi está magnífica, Amadeo é uma das melhores surpresas. Quando percebo, assisto como quem nunca a assistira. Conduzido pelas piadas aos risos, respirando profundo aos sons dos nomes dos mortos pela ditadura, absorto pela narrativa. Os olhos se enchem de vontade ao som do hino. Orgulho. Sou brasileiro. Nanini é brasileiro. Gerald é o que quiser ser, mas o Brasil também é sua bunda, suas provocações, seus desenhos, seu teatro! Eu... sou brasileiro! Sodomizado pela cultura americana com as pernas abertas em um país-IML. Encantado como a bandeira lançada ao palco feito em cultura cafona e delirante de um jovem artista que nem sabe direito o que quer. Eu sou assim... O que assisti foi a mim mesmo! E devo a Gerald por me fazer me rever artista. Ao fim de tudo minha crítica substituí pela de Contardo Calligaris. Pensei muito estes dias todos, mas os gênios precisam ser respeitados e não posso tentar ir além do que li em sua coluna. O que dizer, então? Nada... Basta esperar o oitavo movimento e o nono e o décimo e o décimo primeiro... E quem sabe um dia eu também... Bom, quem sabe...
3 Comments:
adorei! faltaram os episodios da hebraica, as gozacoes com o Gilson, mas o resto esta todo ai. Voce podia fazer algo maior. Um "making of" em palavras porque estou em conversas com o Jaco
LOVE
Gerald
enviado em 17/5/2005 10:28:00
By Anônimo, at 12:57 AM
Oi Ruy!! Adorei seus textos!! Super envolventes! Parabéns!
Beijos pra vc e pra Pat! Saudades!
enviado em 17/5/2005 15:40:00
By Anônimo, at 12:58 AM
Maravilhoso. Adorei. Me emocionei. Me orgulhei de ser sua 'sogra'. Força garoto! Você chega lá!
enviado em 18/5/2005 23:47:00
By Anônimo, at 1:01 AM
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