JEAN CHARLES DE MENEZES: carta a uma nação
Postado na hospedagem anterior do blog na terça-feira, 26 de julho de 2005
05:22:25
Eram muitos homens. Muitos pra quem está com medo. Armados. Não pareciam policiais. Os gritos, a correria, o metrô tão próximo. Não pensei muito, apenas corri em direção aos vagões na esperança de sumir, de não ser descoberta minha ilegalidade. O medo de perder tudo veste o corpo todo, e qualquer outra língua que não a sua torna-se ameaçadora.
Braços fortes amassando meu corpo junto ao chão. De perto, em segundos, muitos pés e pernas, tantos que não fui capaz de contar. Eu, um só!
Meu universo se resumiu ao vazio silencioso daqueles milésimos de segundos. Até que aconteceu. O cheiro de pólvora próxima. Muito próxima. Seca. Forte. Nada é tão assustador quanto perceber que sua sentença fora decretada sem possibilidades de explicações: execução! A saliva estalada pela língua pressionada ao céu da boca salgada. Narinas abertas no impulso de sugar o máximo de ar o mais rapidamente possível, como se fosse capaz de congelar o tempo. Um coração pulsante correndo em lágrimas. Não percebi o que veio primeiro. Talvez o som. Talvez os olhos se fecharem.
Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito.
Como um tiroteio na Rocinha. Uma rebelião no Carandiru. Os filmes americanos. Bons e maus policiais, bandidos, mocinhos. Heróis... Como as bombinhas juninas em Ribeirão do Jorge dos Necas. De uma infância que me retorna aos pulos em flashes como o único lugar seguro. O lugar onde eu gostaria mais do que nunca estar, então. Mas não estamos mais junho...
Enquanto a lembrança tenta guardar o último fragmento do passado, o sangue se esvai junto ao futuro do dia seguinte, da satisfação digna do trabalho conquistado, do reconhecimento humano pelo direito à sobrevivência. Não há dor, somente incompreensão.
Pelas escadas de acesso da Stockwell Station, sobe o eco seco da vida terminada ao massacre de um anônimo. De mais de uma vida, na verdade. Como ficarão meus pais? Meu irmão?
O medo passa. Os músculos relaxam ao piso por inteiro. A consciência simplesmente desaparece. Nem importa mais se um dia me chamei Jean Charles. Que irônico. Justamente quando o Charles mais importante daqui prepara-se para assumir o trono mais antigo do mundo... Não há majestade em ser latino, brasileiro.
Não fosse um país tão injusto ao seu povo; não fossem os políticos inescrupulosos pela ânsia do poder; não fosse uma cadeia de absurdas contradições sociais, eu não estaria aqui em Londres. Não assistiria o terror dos mortos pelos terroristas. Ou veria de perto a transformação do mundo qual tanto sonhei em um lugar inabitável. Aqui não se vive mais. E mortos são todos. Os assassinados pelos homens-bombas, os assassinados pela memória do terror constante, eu, assassinado pelo simples fato de ser ninguém.
E lá estão eles novamente. Saboreando aos microfones, em cadeia mundial, os pêsames pela minha morte. O Brasil me representa em discurso preparado, numa sala pomposa, para poucos.
Não se lembraram de mim quando terminei meus estudos, quando perdi meus empregos. Minhas fomes, minhas frustrações juvenis. A casa antiga, a deseperança de uma família como tantas e tantas. E as mesmas gravatas que agora falam em meu nome, enquanto os nós apertam o mal-estar do fato de obrigá-los a falarem sobre mim, amanhã me esquecerão certamente. Se nunca existi ao meu país vivo, não há de ser morto...
Ah, Brasil! Que saudade das ruas sujas dos carnavais que não dançarei mais, das rodas de samba com amigos de infância que não encontrarei, dos beijos quentes que só existem nos trópicos e que nunca mais vou sentir. Do colo da mãe, das mãos tristes do pai velho e igualmente abandonado.
Vim a Londres esquecer tudo isso, fugir de uma infelicidade crônica sem futuro, e descobrir na frieza de um império de promessas as oportunidades que em minha terra a chuva não foi capaz de regar.
Nunca o esqueci, Brasil. Mas as malas prontas pra minha volta nunca chegarão. Não pertenço mais a ti. Aqui me fiz outro, tornaram-me outro. E hoje me eternizo em máquinas, em rodas, trilhos. Parte de uma história horrível que atinge a qualquer um sem piedade.
Deixo em meu testamento a existência desse brasileiro a tantos outros que por esta estação passarão pisoteando meu espírito abandonado aos tiros por quem o deveria proteger, para lembrá-los que nada adianta estarem aqui sem que ao sairmos de casa não a façamos um lugar melhor para quando voltarmos.
E um desejo, apenas: que o nosso Brasil se encontre e reconheça seus filhos, pois sem isso, talvez o melhor seja mesmo...
Não!
Mesmo daqui ainda consigo ouvir gritar a bateria da Mangueira. E a isso, por si só, já vale lutar e viver.
Beijo, minha mãe... Benção, pai... Fiquem em paz, pois estou bem...
05:22:25
Eram muitos homens. Muitos pra quem está com medo. Armados. Não pareciam policiais. Os gritos, a correria, o metrô tão próximo. Não pensei muito, apenas corri em direção aos vagões na esperança de sumir, de não ser descoberta minha ilegalidade. O medo de perder tudo veste o corpo todo, e qualquer outra língua que não a sua torna-se ameaçadora.
Braços fortes amassando meu corpo junto ao chão. De perto, em segundos, muitos pés e pernas, tantos que não fui capaz de contar. Eu, um só!
Meu universo se resumiu ao vazio silencioso daqueles milésimos de segundos. Até que aconteceu. O cheiro de pólvora próxima. Muito próxima. Seca. Forte. Nada é tão assustador quanto perceber que sua sentença fora decretada sem possibilidades de explicações: execução! A saliva estalada pela língua pressionada ao céu da boca salgada. Narinas abertas no impulso de sugar o máximo de ar o mais rapidamente possível, como se fosse capaz de congelar o tempo. Um coração pulsante correndo em lágrimas. Não percebi o que veio primeiro. Talvez o som. Talvez os olhos se fecharem.
Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito.
Como um tiroteio na Rocinha. Uma rebelião no Carandiru. Os filmes americanos. Bons e maus policiais, bandidos, mocinhos. Heróis... Como as bombinhas juninas em Ribeirão do Jorge dos Necas. De uma infância que me retorna aos pulos em flashes como o único lugar seguro. O lugar onde eu gostaria mais do que nunca estar, então. Mas não estamos mais junho...
Enquanto a lembrança tenta guardar o último fragmento do passado, o sangue se esvai junto ao futuro do dia seguinte, da satisfação digna do trabalho conquistado, do reconhecimento humano pelo direito à sobrevivência. Não há dor, somente incompreensão.
Pelas escadas de acesso da Stockwell Station, sobe o eco seco da vida terminada ao massacre de um anônimo. De mais de uma vida, na verdade. Como ficarão meus pais? Meu irmão?
O medo passa. Os músculos relaxam ao piso por inteiro. A consciência simplesmente desaparece. Nem importa mais se um dia me chamei Jean Charles. Que irônico. Justamente quando o Charles mais importante daqui prepara-se para assumir o trono mais antigo do mundo... Não há majestade em ser latino, brasileiro.
Não fosse um país tão injusto ao seu povo; não fossem os políticos inescrupulosos pela ânsia do poder; não fosse uma cadeia de absurdas contradições sociais, eu não estaria aqui em Londres. Não assistiria o terror dos mortos pelos terroristas. Ou veria de perto a transformação do mundo qual tanto sonhei em um lugar inabitável. Aqui não se vive mais. E mortos são todos. Os assassinados pelos homens-bombas, os assassinados pela memória do terror constante, eu, assassinado pelo simples fato de ser ninguém.
E lá estão eles novamente. Saboreando aos microfones, em cadeia mundial, os pêsames pela minha morte. O Brasil me representa em discurso preparado, numa sala pomposa, para poucos.
Não se lembraram de mim quando terminei meus estudos, quando perdi meus empregos. Minhas fomes, minhas frustrações juvenis. A casa antiga, a deseperança de uma família como tantas e tantas. E as mesmas gravatas que agora falam em meu nome, enquanto os nós apertam o mal-estar do fato de obrigá-los a falarem sobre mim, amanhã me esquecerão certamente. Se nunca existi ao meu país vivo, não há de ser morto...
Ah, Brasil! Que saudade das ruas sujas dos carnavais que não dançarei mais, das rodas de samba com amigos de infância que não encontrarei, dos beijos quentes que só existem nos trópicos e que nunca mais vou sentir. Do colo da mãe, das mãos tristes do pai velho e igualmente abandonado.
Vim a Londres esquecer tudo isso, fugir de uma infelicidade crônica sem futuro, e descobrir na frieza de um império de promessas as oportunidades que em minha terra a chuva não foi capaz de regar.
Nunca o esqueci, Brasil. Mas as malas prontas pra minha volta nunca chegarão. Não pertenço mais a ti. Aqui me fiz outro, tornaram-me outro. E hoje me eternizo em máquinas, em rodas, trilhos. Parte de uma história horrível que atinge a qualquer um sem piedade.
Deixo em meu testamento a existência desse brasileiro a tantos outros que por esta estação passarão pisoteando meu espírito abandonado aos tiros por quem o deveria proteger, para lembrá-los que nada adianta estarem aqui sem que ao sairmos de casa não a façamos um lugar melhor para quando voltarmos.
E um desejo, apenas: que o nosso Brasil se encontre e reconheça seus filhos, pois sem isso, talvez o melhor seja mesmo...
Não!
Mesmo daqui ainda consigo ouvir gritar a bateria da Mangueira. E a isso, por si só, já vale lutar e viver.
Beijo, minha mãe... Benção, pai... Fiquem em paz, pois estou bem...
2 Comments:
ruy, obrigada. fiquei com lágrimas nos olhos. que texto lindo, inteligente e sensível. repassei amplamente. saudades, vero
enviado em 26/7/2005 16:30:00
By Anônimo, at 1:18 AM
difícil comentar... eu li... eu fiquei emocionada, eu estudo como a mídia "conta" atentados terroristas... queria que seu texto saísse nos jornais... na primeira página... enfim.... difícil comentar...
Beijos Carolzinha
enviado em 2/8/2005 17:34:00
By Anônimo, at 1:19 AM
Postar um comentário
<< Home