Antro Particular

02 julho 2007

A GAIVOTA: o teatro de Enrique Diaz

Gaivota [tema para um conto curto], em cartaz no Sesc Pinheiros, pode ser considerado um braço estendido de Ensaio.Hamlet, também com direção de Enrique Diaz, pela estruturação da cena, pela desconstrução da escrita, no reaver da história pelas referências atualizadas.

Se Tchekhov, à primeira olhada, relembra um passado de passagem entre séculos, em uma Rússia desprovida de vontade e alegria, a montagem de Enrique reaproxima-o no espelhar nossas almas em seus vazios, em suas falácias ideológicas, na transitoriedade do efêmero travestido de imediatismo, no confronto entre o comodismo conservador e o desestabilizar vanguardista.

Muitos já falam sobre Tchekhov. E não sendo especialista, prefiro deixá-lo aos outros.

A peça A Gaivota, como em Hamlet, traz a “peça-dentro-da-peça” (utilizando o termo cunhado no programa). A montagem de Enrique traz o ensaio-dentro-da-montagem. E acumula, no sobrepor de uma estrutura instigante, em forma de jogo, uma perspectiva fractal de como a cena pode conduzir e ser conduzida simultaneamente pelas realidades do jogo e ficção. Primeiro temos a peça escrita por Tchekhov, depois a peça do personagem Treplev, então o ensaio como linguagem estética, a montagem tendo o ensaio como base dramatúrgica, e finalmente o espetáculo.

Como se assistíssemos ao drama criado por Tchekhov para Treplev, Enrique nos fornece angústias próximas a partir do processo de criação e motivações para a realização do espetáculo. São atores se questionando pelas falas de Treplev, na verdade. São “trepleves” distribuídos fragmentados lutando por se encaixar numa construção que os traduzam. Treplev e os atores são os mesmos, então.

Atores sobrepondo suas falas, elementos cenográficos movidos a todo instante sem nem sempre haver uma função, iluminação precisa, figurinos trocados... Enrique Diaz vai além da obviedade do fazer uma cena corretamente para instigar o público ausente do processo inicial a participar desde o início. Como se traduzisse aos desavisados o que venha a ser teatro, com seus necessários ensaios, estudos, aprofundamentos, questionamentos, crises, disputas, erros e estados. Transita entre a realidade da ficção tal qual o rizoma deleuziano, acenando pontos de encontro entre diferenças temporais, afastando instantes lineares.

Na consistência do meta-teatro, o teatro surge por completo, aprisionando o espectador, incluindo-o, exigindo dele a disponibilidade perceptiva para compreender que Tchekhov é antes de tudo um pedaço do homem de hoje, e que mais importante do que traduzi-lo ou entendê-lo é recuperar sua face no que pode haver de humano em todos nós.

Se Gaivota não traz mais o frescor da descoberta de Ensaio.Hamlet, ainda assim serve ao propósito de estudar outras possibilidades em se lidar com a dramaturgia e o ator. E faz do teatro de Enrique Diaz e da Cia. dos Atores um respiro necessário para a cena nacional. É esperar para se embriagar com tudo o que ainda há de vir por aí.

2 Comments:

  • A grande maravilha do trabalho da Cia dos Atores é justamente trazer pra aqui e agora a essência do texto clássico. O teatro em geral vive de montar e remontar clássicos de uma forma que a mim remete a um teatro de museu. E a escolha de determinado texto muitas vezes está mais ligado à vaidade de um artista (o sonho de interpretar Ham-let é o mais batido dos casos), do que a necessidade de interpretar a luz dos dias atuais aquilo que o autor colocou em questão na sua época.
    A Cia dos Atores rompe de cara com a questão da vaidade e do ego do artista, estilhaçando os personagens por todo elenco. Todos os atores estão apropriados de todos os personagens. Ou seja, estão apropriados de todo o texto e de todos os seus múltiplos significados. São atores-autores-diretores de si próprios.
    E isso tudo está em questão na Gaivota, pois Arkadina representa justamente esse teatro calcado no ego, no auto-deslumbramento do ator consigo mesmo. E a contemporaneidade da Cia dos Atores está na quebra com esse teatro de museu e na aposta no trabalho do Ator-Rei, que pensa, que escreve, desenha, filma, usa de todos os recursos para se expressar.
    Quando assisti o ensaio.hamlet anos atrás no Sesc Belenzinho, eu me perguntava, pra que montar mais uma vez Hamlet, pra que venho eu aqui assistir a mais uma montagem de Hamlet, sendo que eu mesmo já havia participado de uma montagem do texto de Shakespeare. E ao final da peça, percebi que eles tinham me apresentado uma visão que eu ainda não tinha visto. Havia um porquê sim.
    Na Gaivota, acho que eles foram mais além ainda. Não se limitando a trazer uma visão nova do texto, mas uma visão nova das questões mais fundamentais que Tchekov colocava diante do seu mundo e sua época e que de alguma forma ainda nos são relevantes. E como são!
    Esse meu comentário ficou meio grande, mas é que saí da peça com tantas coisas pululando dentro da cabeça, que eu precisava desabafar!
    Um abração, Ruy!

    By Blogger Fernando Coimbra, at 9:13 PM  

  • È UM ALÍVIO MESMO ASSISTIR UM ESPETÁCULO NO QUAL A ENCENAÇÃO DÁ CONTA DE TANTOS FATORES.. VI ALI AUTORIA DO DIRETOR, AUTORIA DOS ATORES, FIDELIDADE AO TEXTO, JOGO, CLAREZA NAS RELAÇÕES ENTRE LUZ, EPAÇO, FIGURINOS, OBJETOS DE CENA...UMA ESTRUTURA CAPAZ DE CONTER INFINITAS HISTÓRIAS. FICA O DESEJO DE ASSISTIR MUITO MAIS DESSE JOGO, E DE LER AQUI OUTRAS E OUTRAS REFLEXÕES SOBRE VER E FAZER TEATRO.
    PASSEI A LER O BLOG AGORA... TO GOSTANDO MUITO!
    VALEU!!
    tOMÁS

    By Anonymous Anônimo, at 4:42 PM  

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