NOVA DRAMATURGIA: ainda entre Gerald Thomas e Zé Celso
E frente a tantos acontecimentos o mais escutado é a expressão “nova dramaturgia”. Pois bem, vamos a ela. Logo duas questões me surgem: a técnica e a qualidade dessas dramaturgias.
Quanto à técnica pouco se pode criticar. Variadas, as peças se elaboram em condições diferentes e processos particulares, o que significa uma injustiça avaliá-las por um mesmo viés. De certo modo, a dramaturgia apresentada tem se revelado capaz de contar uma história, representar o homem em sua atualidade urbana e se constituir literatura de fácil comunicação.
Já a qualidade pode ser sim discutida. E muita. E não a compreendo aqui pelo prisma de bom ou mau, melhor ou pior, por não se tratar de gosto e empatias estéticas. Apesar das características próprias de cada criação, aspectos tais capazes de assinar uma autoria, a impressão é de se estar sempre à frente de um mesmo trabalho. Redundante, circular, a nova dramaturgia pouco se aprofunda nas questões quais se apóia, gerando textos superficiais e decepcionantemente próximos. Há uma certa aceitação temática desse homem solitário, da busca pelo sentimento perdido, do amor destruído pela violência do dia-a-dia, da incapacidade em ir além dos sofrimentos para a criação de um outro estado social. Discussões desde de sempre e que devem continuar, pois cabe à Arte o confronto com o inatingível do Homem.
Contudo o que se assiste ou ouve nas apresentações das dramaturgias atuais é uma esgotável fórmula desses aspectos construídos em boa técnica mas sem capacidade criativa para ir além da obviedade no tratamento das questões. Não há proposta estética tão pouco um olhar verdadeiro sobre o texto teatral. Volta-se freqüentemente, e quase sempre, a uma construção híbrida entre o naturalismo pobre do diálogo e a representação cênica do palco italiano dentro de uma tradição tbcista.
Essa nova dramaturgia quer ser reconhecida, ser alguém, e para isso busca por parâmetros o mais próximo ao reconhecível publicamente, ao rasteiro da linguagem dramática para estabelecer junto ao espectador a compreensão de suas mensagens. Ora, poucas são essas mensagens. E não é por acaso que não se tem os espaços de apresentação dos textos com fila de pessoas interessadas. Os dramaturgos se satisfazem com vinte pessoas espalhadas nas poltronas. A crítica enfatiza a situação argumentando ser a dramaturgia contemporânea uma arte complexa. E é, de fato. Mas não o que se produz neste instante. O teatro está chato por ser invariavelmente óbvio. Restam as comédias de apelo popular e as produções com personalidades de colunas sociais.
Perdoem-me os dramaturgos amigos, mas as criações atuais são mais propícias ao universo televisivo do que aos palcos. Poucos são verdadeiramente os que conseguem transpor para o papel discussões tão comuns de forma criativa.
O ano de 2005 elegeu Por Elise como um dos melhores espetáculos, e Grace Passô recebeu da crítica elogios dignos de genialidade. Ora tida como novo caminho para a dramaturgia ora como um novo Guimarães Rosa, a dramaturgia de Grace mostra claramente a opção da crítica em querer a qualquer preço algo que consiga tapar o vazio artístico apropriadamente ignorado na geração recente. Eleita pela simplicidade com que constrói a narrativa, há que se fazer entretanto uma distinção essencial entre simplicidade e superficialidade. A infeliz comparação com Guimarães Rosa, por exemplo, determina ainda mais os aspectos frágeis do texto. O romancista minero não tratou a palavra com simplicidade alguma, pelo contrário, na exigência de uma língua simples foi capaz de gerar imagens complexas e poéticas. Grace não realiza isso. A dramaturgia de Por Elise se confronta com o esvaziamento e a superficialidade onde a suposta poesia surge pelo melodrama de suas personagens. E não vai além disso.
Esta caricatura conduzida pela interpretação eufórica da crítica sobre as capacidades da produção dramatúrgica recente é verificada de maneira mais generalizada. Poucos são os artigos responsáveis e conseqüentes a esse respeito. E se estabelece a convenção do silencio sobre a nova produção pela cumplicidade e companheirismo que só fazem impedir público e artistas de avançarem de fato sobre como pode ser a arte dramatúrgica. Nos debates, nos encontros, a hipocrisia latente se revela em aplausos e tapas de sucesso nas costas amigáveis. Nos corredores, nos e-mails e telefonemas, as críticas são duras frente à banalidade da nova dramaturgia.
De modo geral o Brasil ainda se prende a algumas poucas vertentes dramatúrgicas. Nelson Rodrigues, Plínio Marcos ainda são de fato os conselheiros dos que se aventuram na escrita teatral. E os textos novos não fogem a eles, raras exceções. Há que se fazer uma distinção entre escrever para teatro e ter a dramaturgia como arte. O país está repleto de escritores, alguns muito bons. Artistas, entretanto, estão em extinção.
Apimentando ainda mais a discussão trago então dois outros parâmetros: Gerald Thomas e José Celso Martinez Corrêa.
Por que a dramaturgia de Gerald não é considerada? O que determina aos críticos e estudiosos que o texto de suas peças não valem por si só? Acompanhar o Gerald tem me apresentado também a possibilidade de perceber a complexa rede de sua criação textual. A importância da dramaturgia em sua encenação é sem dúvida determinante e complementar. Mas ainda se tem os espetáculos dele como se fossem improvisações sobre temas, onde o diretor conduz os atores em uma performance. Gerald está longe de ser apenas um encenador. A dramaturgia de seus espetáculos trata a linguagem escrita como sua encenação trata o ator: desconstruindo a formatação histórica clássica, estabelecendo parâmetros de investigação com outras linguagens, criando sistemas próprios de percepção e realização. Gerald Thomas talvez seja o primeiro no Brasil a desafiar a tradição e entender que cabe muito mais ao texto depois da poesia concreta, de Samuel Beckett, de Joyce, Kafka, Gertrud Stein e tantos outros. E sua dramaturgia corre por caminhos imprevistos, em desconstruções da própria literalidade do texto. Não haveria sua encenação não fosse sua dramaturgia, mas parece que aos dramaturgos, tudo que foge de ser linear e sustentado por uma construção do compreensível imediato não é dramaturgia. Gerald Thomas é acima de tudo também um dramaturgo, e como tal, aparados os preconceitos com seu trabalho, certamente um dos mais contemporâneos entre nós. Muitos me odiarão por ler este texto. Ao menos conto com a capacidade crítica de poucos como Rubens Rewald. Gerald traz a tona a dramaturgia de um teatro que une o cotidiano do mundo e as perspectivas do homem contemporâneo, optando por construir espetáculos que se servem a qualquer um e nenhuma específica cultura. Acima de tudo, Gerald é um homem do teatro, entendendo-se o teatro como o mundo.
Este é o aspecto principal qual a nova dramaturgia almeja, ser universal, dizer as verdades do mundo, escrever a história dos homens de hoje. E está longe de conseguir mais do que obviedades. Em outro sentido, a cultura brasileira perde na nova dramaturgia espaço de manifestação enquanto característica única. Não interessa aos dramaturgos em ação a discussão sobre a própria língua, sobre o discurso, a retórica. Como se bastasse ter um texto tecnicamente bem escrito. Não que um texto de teatro deva se prender a pensar sua construção ao fator da cultura. Não é isso. Mas é também.
E nesse âmbito, depois de Oswald de Andrade, apenas José Celso Martinez Corrêa fora capaz de gerar uma dramaturgia excepcionalmente nacional, brasileira no sentido antropológico do termo. Com seus Ws e Ks e Ys e Zs inseridos nas palavras quais redesenha em som e forma, Zé Celso vai além de ter o texto como um papel escrito em computador com Times New Roman. Interessa a palavra por ser palavra, sua forma sígnica redesenhada sob aspectos de uma cultura colonizada e descaracterizada. Interessa a palavra sobre o papel enquanto imagem articulada, sem linhas precisas por tabulações literárias, onde cabe a importância do espaço ocupado para descrever sentido tanto quanto cabe ao clássico as rubricas. Zé Celso trata a palavra associando ao seu sentido literário a transformação sócio-cultural e o subtexto de uma visualidade concretista. Subvertendo o signo, descaracterizando a palavra de sua obviedade, a dramaturgia de Zé Celso é escrita para ser cantada. Portanto, letra, imagem, som. Na construção da narrativa mítica de seus textos, no épico de suas tragédias, Zé Celso continua a busca dos modernistas em construir uma palavra capaz de refletir o todo. Sem se fazer modernista porém, indo além, conduzindo a dramaturgia no que há de mais contemporâneo: a complexidade pela multiplicidade de sentidos, e determinando ainda mais o valor popular de Oswald e de um Brasil específico e único.
Gerald Thomas e Zé Celso são de fato os dois mais interessantes dramaturgos brasileiros quando se trata de uma dramaturgia que vai além de contar histórias. Infelizmente a resistência ainda se manterá, preconceituosa, cínica e desprovida de crítica e reflexão sobre a linguagem. Mas aos que tiverem coragem de se aproximar de fato, perceberão que por traz das suas estéticas, de suas características específicas, encontram-se muitos dos poucos textos interessantes na produção recente. A nova dramaturgia corre para se fazer respeitável, mas sobre qual fundamento que não idéias para estórias? O tempo passa, as leituras continuarão acontecendo, as salas invariavelmente vazias e freqüentadas por amigos e raros interessados. Textos tecnicamente bem realizados, histórias de solidão, amores rompidos, etc etc etc. E mesmo que isso traga com o tempo um público maior, o que será da arte dramatúrgica daqui há poucas décadas?